Seção 1.1) Segundo Simberloff (1980), a ciência ecológica teria passado por três paradigmas (sensu Kuhn 1970): essencialismo, materialismo e probabilismo. Não irei discorrer sobre cada um deles2), mas sim salientar uma instigante questão que permeia suas fundamentações: a idéia de processos determinísticos vs. processos estocásticos. Segundo a dita ciência “cartesiana” (ou “newtoniana”), seria possível prever qualquer evento da natureza desde que se tenha conhecimento suficiente sobre as características do sistema (e.g, massa dos corpos, direção e intensidade das forças); esta visão se baseia na crença de que cada causa gera um efeito determinado, numa concepção “mecânica” do universo (Capra 2001)3). A partir do início do séc XX, a idéia de um universo perfeitamente previsível começou a ser questionada, gerando intensos debates. Foi neste contexto que Albert Einstein formulou sua célebre frase: “Deus não joga dados”, na qual defendia sua visão “newtoniana” do universo frente às implicações iconoclastas de idéias como o princípio da incerteza de Heisenberg (e.g., 1927).
A questão determinismo vs. estocasticidade pode ser identificada na ecologia, por exemplo, nas visões opostas de Clements e Gleason sobre como as comunidades são organizadas. A visão de Clements (1916) de comunidades como superorganismos implica que o processo de sucessão ecológica seria determinístico e unidirecional, onde4) o padrão presente seria determinado pelo padrão passado5) (Pidwirny, 2006). Já pelo conceito individualístico de Gleason (1926), as associações de espécies seriam simplesmente o resultado de similaridades nos requerimentos e tolerâncias das espécies (e parcialmente resultado do acaso), e a sucessão seria bem menos previsível do que seria esperado pelo conceito de superorganismo (Pidwirny,2006). Assim, mais do que uma questão filosófica puramente abstrata, a questão determinismo vs. estocasticidade tem implicações diretas sobre nossa capacidade de previsão de fenômenos naturais6).
Mas, e os modelos nulos?
Modelos nulos podem ser usados, dentre outras coisas, para lançar luz sobre a questão determinismo vs. estocasticidade em processos ecológicos. Modelos nulos são baseados em aleatorizações dos dados e podem gerar padrões que seriam esperados na ausência de um mecanismo ecológico particular (Gotelli e Graves, 1996). Por exemplo, pode-se simular como seria a variação na composição (ou atributos, ver Gotelli e Graves, 1990) de espécies em certos locais (e.g., ilhas) se não houvesse diferença na habilidade de colonização entre as espécies do pool continental. Assim, pode-se identificar se o padrão observado “foge” do que seria esperado ao acaso, i.e, do que seria esperado se o processo de colonização fosse estocástico. Se o padrão observado fosse diferente do esperado ao acaso, a análise apontaria para existência de mecanismos que favoreceriam a colonização das ilhas por certas espécies em detrimento de outras, i.e, para um processo com certo grau de determinismo. Este exemplo nos mostra que a análise de modelos nulos pode demonstrar se padrões observados são coerentes com mecanismos imaginados, porém não pode “confirmar” se tais mecanismos seriam de fato responsáveis pelo padrão. Por exemplo, no caso citado acima, a presença constante de certas espécies e a ausência de outras poderia ser resultado de interações competitivas nas ilhas e não de diferenças na habilidade de colonização.
O exemplo acima demonstra que o uso de modelos nulos obriga o pesquisador a distinguir claramente padrão de processo, o que seria um mérito da abordagem (Gotelli e Graves 1996). Outra característica de tal abordagem é a necessidade de se definir claramente a estrutura e premissas do modelo nulo. Operacionalmente, este exercício consiste em permitir que certos elementos dos dados variem enquanto outros sejam mantidos constantes, permitindo que restrições biologicamente relevantes sejam incorporadas aos modelos (Gotelli e Graves 1996). Por exemplo, uma abordagem de modelos nulos para avaliar os padrões de co-ocorrência (e conseqüentemente de competição interespecífica) em bandos mistos de aves de subosque no Peru utilizou diferentes modelos nulos com premissas cada vez mais realistas. Dentre estas premissas, as quais foram baseadas em observações de campo, estavam: i) em cada bando só poderia haver um casal ou família de cada espécie e ii) o número de indivíduos de uma dada espécie em um dado bando era limitado (Graves e Gotelli 1993).
Apesar de seus méritos, a abordagem de modelos nulos foi veementemente criticada ao longo da história da ecologia (e.g., Roughgarden 1983, Quinn e Dunham 1983). Dentre as críticas estão as afirmações de que modelos nulos suporiam cenários de “mundos sem estrutura” (Roughgarden 1983), além de objeções filosóficas como a de que testes de hipótese sob esta abordagem não seriam válidos se há forte interação entre os mecanismos (Quinn e Dunham 1983).
Defendo que apesar de suas limitações, a abordagem de modelos nulos é muito útil, especialmente em casos onde a experimentação é inviável (Gotelli e Graves 1996). A abordagem de modelos nulos permite explorar a gama de padrões esperados na ausência de certos mecanismos, o que de maneira nenhuma reflete um cenário de “mundo sem estrutura”. Assim, se aumentam as possibilidades de análises padrão-processo, as quais muitas vezes são a única opção dado a escala espacial dos sistemas estudados. Em suma, a abordagem pode revelar padrões de comunidades que são relevantes para o teste de hipóteses ecológicas (Gotelli e Graves 1996).
Seção 27). Dentre as principais causas da chamada “crise da biodiversidade”, destaca-se8) a perda e fragmentação dos habitats naturais (Fahrig 2003), principalmente em regiões tropicais (Myers 1988). Corredores florestais têm sido freqüentemente defendidos como ferramentas úteis para minimizar os efeitos da perda e fragmentação dos habitats sobre a fauna (e.g., Noss 1987). No entanto, há uma notável falta de evidências empíricas que suportem9) sua eficiência como ferramenta de conservação, particularmente na Mata Atlântica. Em meu projeto de mestrado pretendo lançar luz sobre esta questão, utilizando aves como grupo surrogate10). Para tanto, estou avaliando se: i) corredores aumentariam a mobilidade de aves de subosque em paisagens fragmentadas e ii) como as características dos corredores (largura e umidade) influem em sua capacidade de servir como habitat para aves florestais.
Um dos objetivos específicos da minha pesquisa é avaliar quais espécies se beneficiam pela presença de corredores. Para tanto realizo contagens de aves (ponto fixo) em corredores de diferentes larguras, bem como em fragmentos e áreas de mata contínua. Prevejo duas possibilidades: i) não há espécies particularmente beneficiadas pelos corredores, e conseqüentemente, as espécies encontradas nos mesmos seriam um subconjunto aleatório das espécies da região; ou ii) há espécies particulares que se beneficiam dos mesmos, e as espécies encontradas nos corredores largos seriam um subconjunto aninhado11) do pool total de espécies da região; ainda, as espécies encontradas nos corredores mais estreitos seriam um subconjunto aninhado das espécies encontradas nos corredores mais largos. No cenário i) estariam em operação processos estocásticos12) já que a composição de espécies nos corredores não poderia ser prevista 13). Já no cenário ii) estariam operando processos determinísticos14), já que a composição de espécies nos corredores seria previsível. Cada um destes cenários apresenta implicações importantes para a conservação. No cenário ii) a utilidade dos corredores seria mais restrita, pois apenas um grupo determinado de espécies responderia positivamente a15) implementação de corredores, enquanto que as demais espécies requereriam outras estratégias de conservação.
Mas, e os modelos nulos?16)
Vejo a análise de aninhamento com modelos nulos uma ótima opção para avaliar quais espécies seriam beneficiadas pelos corredores. Através da construção de um modelo nulo posso simular como seriam os padrões de composição de espécies segundo o cenário estocástico e comparar com o padrão observado 17).
Uma questão crucial, além da escolha da métrica de aninhamento, seria a construção do(s) modelo(s) nulo(s), já que esta é parte a mais controversa da inferência estatística em análises de aninhamento (Ulrich et al. 2009). Se um modelo nulo não for cuidadosamente construído, a hipótese nula pode não ser rejeitada porque o modelo incorporou alguns dos processos os quais deveria revelar, ou porque simplesmente tem um baixo poder estatístico18) (Gotelli e Graves 1996).
19) Parece-me coerente restringir o número de espécies de acordo com a largura do corredor, i.e., fixar os totais marginais das colunas da matriz, já que a relação riqueza-largura se assemelha a relação espécies-área20) (Candia-Gallardo e Metzger dados não-publicados). Portanto, é biologicamente plausível supor que corredores estreitos sempre terão menos espécies que corredores mais largos e incorporar esta restrição ao modelo. Já fixar o número de localidades por espécie, i.e., os totais das linhas21) não é uma decisão óbvia. Parece-me razoável construir dois modelos, ambos com as colunas fixas, porém um com os totais marginais das linhas fixos e outro com estes totais “equiprovavéis nulos”22) (sensu Ulrich et al. 2009). No primeiro caso, o número de ocorrências de cada espécie seria mantido, e a “abundância relativa” das espécies seria considerada como resultado de processos determinísticos. No segundo caso a “abundância relativa” das espécies seria deixada livre e considerada resultado de processos estocásticos. Múltiplas hipóteses alternativas podem ser testadas com múltiplos modelos nulos (Schluter e Grant 1984, Graves e Gotelli 1993, Gotelli e Graves 1996)23).
Através da abordagem de modelos nulos considero que serei capaz de avaliar se apenas um grupo particular de espécies é beneficiado pelos corredores ou não24). Tal abordagem também pode ser utilizada em estudos que visem identificar espécies sensíveis, por exemplo, a25) perda e fragmentação dos habitats. Um dos pontos-chave na biologia da conservação é a identificação acurada de espécies susceptíveis26) a27) extinção, esforço este emblematizado pela confecção de listas de espécies ameaçadas (e.g., IUCN 2009).
A abordagem de modelos nulos com certeza apresenta algumas limitações. Por exemplo, pode ser que algumas espécies estejam presentes (ou não) nos corredores de forma determinística e outras de forma estocástica. Não estou certo se esta abordagem por si só seria capaz de identificar padrões deste tipo. Não obstante, me parece uma alternativa mais robusta à minha antiga opção, a qual consistia no uso de técnicas de ordenação (NMDS). A interpretação biológica dos eixos de ordenação por vezes não é obvia (G. Ferraz com. pess.)28) Considero o uso de análise de aninhamento29) aliada a uma construção cuidadosa de modelos nulos uma opção mais elegante.
Bibliografia
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