A
vida de uma abelha solitária
Isabel Alves dos Santos
Depto. Ecologia, Universidade de São Paulo
isabelha@usp.br
Artigo publicado na
Revista Ciência Hoje n.179 (jan/2002)
Ao contrário
do que muitas pessoas imaginam, a grande maioria das abelhas não
vive em sociedade ou em colônias com rainha e operárias.
A maioria das espécies de abelhas é solitária, isto
é, vivem sozinhas. Cada fêmea, individualmente constrói
e cuida do seu próprio ninho. A fêmea morre antes de sua
cria nascer. Ou seja, não há contato entre as gerações.
Desta maneira, o modo de vida de uma abelha solitária é
bastante diferente do que conhecemos para aquelas abelhas que vivem em
colmeia.

Fêmea
de abelha solitária (Tetraglossula) visitando sua flor preferida:
Ludwigia.
A diversidade de
abelhas no Brasil
Estima-se que no mundo existam mais de 20 mil espécies de abelhas.
O Brasil, devido a suas proporções continentais e riqueza
de ecossistemas, pode ser considerado privilegiado neste aspecto, pois
abriga cerca de ¼ destas espécies (ca. 5000). Contudo, infelizmente,
a abelha mais conhecida entre os brasileiros é a abelha européia
(Apis mellifera), que na verdade não é nativa do Brasil.
Esta espécie foi introduzida no período colonial para fins
de apicultura. Atualmente é a espécie mais abundante em
nossos ambientes (até mesmo urbanos), fazendo nos esquecer que
possuímos uma fauna de abelhas nativa rica e diversa. Só
no Estado de São Paulo foram listadas 729 espécies e no
Rio Grande do Sul mais de 500 espécies são conhecidas. Segundo
levantamentos feitos em diferentes regiões do Brasil, até
hoje temos mais de 2 mil espécies de abelhas catalogadas.
Uma ampla diversidade de formas, tamanhos e cores caracteriza a nossa
apifauna. Existem espécies com tons verdes, azuis e roxos metálicas,
que geralmente são confundidas com moscas varejeiras. Algumas abelhas
são bem ornamentadas com listas e manchas pelo corpo, e outras
possuem cores lisas ou brilhantes de várias tonalidades entre negro
e amarelo. Existem abelhas que chegam a medir mais de 5 centímetros
e outras muito pequenas com pouco mais de 2 milímetros, que geralmente
também são confundidas com outros grupos de insetos.

Pequena
amostra da diversidade de abelhas nativas do Brasil (2x)
De solitário
a social
Entre as abelhas existem diferentes modos de vida, denominados graus de
sociabilidade. Os dois extremos são: as espécies de vida
solitária e aquelas de vida totalmente social (eusociais). Entre
estes extremos existem categorias como: subsociais, parasociais, ou quasesociais,
que se diferenciam pela presença e domínio de uma rainha.
Algumas espécies solitárias podem construir seus ninhos
agregados, o que poderíamos comparar aos nossos "condomínios"
onde vários ninhos da mesma espécie estão dispostos
no mesmo local. Cada ninho possui a sua "dona" e cada abelha,
ou melhor, cada fêmea cuida do seu próprio ninho.
Abelhas altamente sociais -ou eusociais- formam colônias numerosas,
perenes e com alto grau de organização interna. No Brasil
este é o caso das abelhas sem ferrão -Meliponíneos,
popularmente conhecidas como jataí, uruçu, mandaçaia,
guaraipo, mirim, etc. Estas espécies são bem conhecidas
pelos índios e pessoas que vivem no campo.
Ciclo das espécies
solitárias
A fêmea de abelha solitária deve cuidar de seu ninho sozinha.
Durante sua vida estão incluídas as seguintes tarefas: procurar
o local para o ninho, construi-lo, colocar os ovos, buscar alimento para
a cria e defender o ninho quando necessário.
A fêmea ao nascer será imediatamente fecundada e, em seguida,
começará a busca por um local adequado para nidificar. Este
local pode ser um tronco de madeira, uma área exposta de solo ou
barranco, fendas em muros, ou ainda orifícios pré-existentes
em outro tipo de substrato, como um buraco de fechadura, canos, tijolos,
etc. Em muitas espécies as fêmeas procuram um lugar próximo
ao local de seu nascimento, o que chamamos de reutilização
do ninho parental. Isso é comum para as espécies que formam
agregações ("condomínios"). 
Ao achar um local adequado, a fêmea inicia a construção
do ninho. Escava a cavidade adequadamente e sai para coletar material
para o revestimento interno. O material de construção, que
varia entre as espécies, pode ser: areia, terra, barro, pedaços
de folhas ou restos vegetais, óleo floral, resina, entre outros.
Ao trazer tais materiais para dentro da cavidade, a fêmea manuseia-os
formando o que chamamos de célula, ou seja, o espaço (a
unidade) onde sua prole se desenvolverá. Um ninho é composto
por várias células. Cada célula será revestida
com o material de construção e preenchida com alimento,
que geralmente é constituído por pólen misturado
com néctar. A fêmea coloca um ovo em cada célula.
Quando fechar esta célula, logo começará a construir
a próxima. Estas etapas se repetem tantas vezes quanto forem o
número de células.
Em geral uma abelha solitária constrói entre 6-15 células.
Isto pode levar algumas semanas (entre 3-6 semanas). Após este
período a fêmea morre.

Fêmea
de abelha solitária (Monoeca) saindo do seu ninho escavado
no chão
O desenvolvimento
da prole
O ovo colocado pela fêmea logo se transformará em uma pequena
larva. Esta larva passa então a ingerir o alimento que está
ao seu redor. A larva come sem parar e cresce rapidamente, passando por
algumas mudas, que chamamos de estágios larvais (geralmente sofre
4 a 5 mudas). Após consumir todo o alimento que sua mãe
deixou dentro da célula, a larva madura ocupa a maior parte do
espaço interno da célula. Neste momento também encontramos
dentro das células grande quantidade de fezes que a larva defecou.
Neste estágio a larva de algumas espécies pode tecer um
casulo ao seu redor, chamado de "cocoon".
O último passo do desenvolvimento é a pupa, que é
o estágio intermediário entre a larva e a forma definitiva
do inseto. Quando chega próximo ao período de eclosão,
a larva madura se transformará em uma pupa e completará
sua metamorfose. Dos ninhos saem então as abelhas já adultas,
que iniciam imediatamente um novo ciclo da espécie. Todas as etapas
serão repetidas pelos novos indivíduos.
O tempo total de desenvolvimento varia de espécie para espécie
e depende também de fatores climáticos, da região
de ocorrência da espécie e do número de gerações
que a espécie produz em um ano.

Vista
interna de um ninho de abelha solitária (Tetrapedia) construído
em um tubo de papel e composto por 6 células. As células são divididas
por uma camada de areia e óleo. A massa amarela são os grãos de pólen
coletados pela fêmea e que servirão de alimento para a larva.

Fases
do desenvolvimento: ovo (1.) e larva jovem (2.) no meio da massa de pólen,
larva madura (3.) após ter consumido toda a provisão de alimento e por
fim a pupa (4.) com certa pigmentação.
Número
de gerações
Muitas das espécies solitárias são univoltinas, isto
significa que possuem apenas uma geração por ano. Isto é
comum para as espécies que ocorrem em regiões de clima subtropical
ou temperado, onde as estações do ano são bem marcadas.
Assim, aquela espécie ocorre em um período bem definido
do ano. No sul do Brasil por exemplo, onde o inverno é rigoroso,
a maioria das espécies de abelhas nasce quando a temperatura começa
a subir. Nos meses de primavera há um "boom" de nascimento
de abelhas. Muitas delas foram produzidas na primavera anterior e agora,
após um ano, estão emergindo para formar a próxima
geração. Permaneceram por muitos meses dentro da célula
a espera da melhor época para nascer. Isto significa que houve
um período em que o desenvolvimento estacionou. Este período,
que pode durar até 10 meses, chamamos de diapausa e geralmente
ocorre no último estágio larval. A larva madura permanece
imóvel, aparentando estar morta.
Outras espécies possuem 2 gerações (bivoltinas).
Por exemplo, fêmeas que nasceram em novembro estarão ativas
e construindo suas células por algumas semanas. A cria referente
a estas fêmeas eclodem em fevereiro e iniciam imediatamente um novo
ciclo. Porém, a cria desta segunda geração permanecerá
em diapausa por alguns meses (outono e inverno) e sua prole eclodirá
apenas em novembro. Portanto, espécies bivoltinas possuem 2 gerações
durante o ano, por exemplo uma em novembro e outra em fevereiro.
Além
da temperatura, o ciclo das chuvas também é um fator que
pode influenciar o número de gerações por ano de
uma dada espécie de abelha.
De um modo geral podemos dizer que a primavera é o período
com maior número de espécies de abelhas em atividade, o
auge da ocorrência das abelhas! Não é por acaso que
isso coincide com o período de floração intenso de
diversas espécies vegetais, já que as abelhas são
totalmente dependentes das flores para sua sobrevivência.
Os Machos das abelhas
solitárias
Geralmente, os machos possuem um período de desenvolvimento mais
curto e nascem alguns dias antes das fêmeas. Logo após seu
nascimento estão prontos para cópula. Esperam a eclosão
das fêmeas virgens no local dos ninhos, ou as aguardam nas flores.
Este comportamento é denominado de patrulha, que nada mais é
do que a procura e espera por fêmeas para cópula. Sendo assim,
é comum observar numerosos machos voando avidamente ao redor do
local dos ninhos ou nas fontes de alimento preferido das fêmeas.
Os machos visitam as flores para tomar néctar e depois patrulham
sobre as plantas ou sentam na folhagem aguardando a chegada da fêmea.

Machos de abelhas
solitárias geralmente não voltam para o ninho para dormir.
No meio da tarde, quando não há mais fêmeas virgens
para nascer, os machos precisam procurar um lugar para passar a noite.
Machos de algumas espécies se agregam e dormem pendurados na folhagem
próximo ao ninho ou à planta. Machos de outras espécies
procuram um local mais ''aconchegante" e dormem dentro de flores.
Geralmente são flores que fecham a noite e reabrem no dia seguinte
(por exemplo flores de cactos, petunia, etc). Os machos chegam nestas
flores no final da tarde, antes de seu fechamento, se acomodam entre os
estames ou no fundo da flor e ficam lá até a flor abrir
no outro dia.
Os "inimigos" das abelhas solitárias
Os inimigos naturais das abelhas são muitos e variados, indo desde
outras espécies de abelhas até o homem que destrói
seus habitats naturais ou retira as fontes florais de que elas tanto dependem.
Nas abelhas solitárias é muito comum a ação
de parasitas nos ninhos. Estes parasitas podem ser outras espécies
de abelhas, vespas, formiga feiticeira, moscas, entre outros. A estratégia
mais comum destes parasitas consiste em invadir o ninho enquanto sua "dona"
está ausente. Eles rondam os locais dos ninhos, esperam a fêmea
sair para coletar e entram no ninho. Então, colocam seu ovo dentro
da célula que já está preparada para a cria da hospedeira.
Algumas espécies de parasitas destroem o ovo da hospedeira e outras
apenas colocam o ovo e saem. Neste último caso, o ovo se desenvolverá
rapidamente e a larva do parasita (com poderosas mandíbulas) é
quem destruirá o ovo ou a jovem larva da hospedeira. A larva do
parasita passa então a se alimentar do pólen e completa
seu desenvolvimento normalmente dentro da célula. Estes parasitas
são chamados cleptoparasitas.
Importância
das abelhas
As abelhas são muito mais importantes do que parecem. O seu papel
ecológico é fundamental na manutenção da diversidade
de espécies vegetais. As 20 mil espécies de abelhas que
estima-se existir no globo, são essenciais para a reprodução
sexual das plantas. Durante suas visitas às flores, as abelhas
transferem o pólen de uma flor para outra, promovendo o que chamamos
de polinização cruzada, ou seja neste momento ocorre a troca
de gametas entre as plantas. Uma boa polinização garante
a variabilidade genética dos vegetais e a formação
de bons frutos.
Deste modo, as abelhas também são importantes para as plantas
cultivadas que dependem de agentes polinizadores. Portanto, as abelhas
são indiretamente responsáveis pela produção
de alimentos: frutas, legumes e grãos.
Como dito no início, a diversidade de abelhas no Brasil é
grande. Porém, pouco conhecemos sobre a vida da maioria destas
espécies. Mas como toda unidade biológica, cada espécie
de abelha tem seu papel na comunidade, mesmo que este ainda não
esteja avaliado. Portanto, as abelhas devem ser preservadas, bem como
o ambiente em que vivem e dependem para completar seus ciclos de vida.

Note
o estigma (parte feminina da flor) encostando na fronte da abelha (Centris)
durante visita à flor. Foto: Mario Barroso e Cynthia Pinheiro Machado
Literatura adicional
recomendada:
1. CAMILLO, E.; GARÓFALO, C. A. & SERRANO, J.C. 1993. Hábitos
de nidificação de Melitoma segmentaria, Centris collaris,
Centris fuscata e Paratetrapedia gigantea (Hymenoptera, Anthophoridae).
Revta. bras. Ent. 37 (1): 145-156.
2. CAMILLO, E.; GARÓFALO, C. A.; SERRANO, J.C. & MUCCILLO,
G. 1995. Diversidade e abundância sazonal de abelhas e vespas solitárias
em ninhos armadilhas (Hymenoptera, Apocrita, Aculeata). Revta. bras. Ent.
39 (2): 459-470.
3. MICHENER, C. D. 2000. "The Bees of the World". The Johns
Hopkins University Press.
4. ROUBIK, D. W. 1989. "Ecology and Natural History of Tropical Bees".
Cambridge Tropical Biology Series. Cambridge University Press.
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