Renato A. Ferreira de Lima

Doutorando em Ecologia, Instituto de Biociências, USP.

Ensaio

Teoria Neutra da Biodiversidade

Apresentação

A publicação do livro ‘The Unified Neutral Theory of Biodiversity and Biogeography’ de Stephen Hubbell (2001), que estabeleceu em ecologia que comunidades naturais são governadas por eventos meramente casuais1), gerou (e tem gerado) um enorme debate entre ecólogos de todo mundo. Para se ter uma idéia, desde 2001 o livro já foi citado mais de 2.000 vezes e já foram publicados mais de 2.500 artigos científicos relacionados à Teoria Neutra da Biodiversidade2). O itálico acima destaca que a publicação do livro foi um marco para a introdução destas idéias em ecologia, contudo outros ecólogos já haviam incorporado a neutralidade em suas formulações (e.g. Caswell 1976, Thomas & Foin 1982, Bell 2000), inclusive o próprio Hubbell (1979, 1997).

Contudo, a idéia de sistemas naturais governados por eventos casuais não é nova. Desde a década de 60, geneticistas já admitiam a existência de mutações ocorrendo de maneira neutra e que tais mutações levariam a uma deriva gênica aleatória (Kimura 1968). E foi exatamente a partir da genética que ecólogos buscaram adaptar a idéia de neutralidade para a ecologia, dentre os quais o mais bem sucedido foi o próprio Hubbell (Alonso et al. 2006). De fato, o paralelo é bastante intuitivo se assumirmos que estamos lidando com níveis de organização distintos de um mesmo sistema natural (comunidade vs. deme). Em genética, eventos neutros promoveriam a diversidade de alelos, enquanto que em ecologia promoveriam a riqueza de espécies.

Tais afirmações causaram grande desconforto entre ecólogos, pois a teoria clássica existente desde a década de 50 (e.g. Hutchinson 1959) assume a existência do nicho ecológico como elemento fundamental na estruturação das comunidades e na manutenção da riqueza de espécies. Mais especificamente, a teoria clássica prevê que processos bastante determinísticos, como competição (passada ou atual – Connell 1980), partição de nicho (no tempo ou no espaço - Grubb 1977) e processos dependentes de densidade (e.g. Connell et al. 1984), atuam moldando as interações inter- e intra-específicas das espécies. Estes processos determinísticos seriam também os principais responsáveis pelo processo de especiação na natureza. A teoria neutra também colocou em questionamento outro conceito clássico em ecologia, a Teoria da Biogeografia de Ilhas (MacArthur & Wilson 1967). Este desconforto também surgiu tempos atrás entre os geneticistas, pois teoria neutra de certa forma se contrapõe à própria idéia de evolução adaptativa de Darwin, o que culminou em idéias como ‘evolução não-darwiniana’ (King & Jukes 1969).

Dentre as características da Teoria Neutra da Biodiversidade, aquela que a tornou mais intrigante e difundida foi sua simplicidade. Para abordar questões complexas como distribuição, abundância e diversidade de espécies em diferentes escalas (locais e regionais), a teoria de Hubbell lançou mão de apenas dois princípios (Hubbell 2001, Alonso et al. 2006): (i) os indivíduos de diferentes espécies de uma mesma comunidade estão sujeitos a taxas similares de natalidade, mortalidade e dispersão, ou seja, as espécies de uma comunidade são funcionalmente equivalentes; (ii) os recursos disponíveis estão saturados de modo que um novo indivíduo só entra quando um outro liberar recursos (e.g. morrer), um processo conhecido como dinâmica de soma zero. A partir destes princípios básicos, o número e abundância das espécies variariam exclusivamente por variações aleatórias nas taxas de nascimento, morte e dispersão, que compõe representa a deriva neutra de comunidades. Assim, Hubbell simplesmente explicitamente desconsiderou conceitos consagrados como competição e nicho ecológico, o que foi, em última análise, a causa de tamanha controversa.

A Teoria Neutra da Biodiversidade, apesar do curto espaço de tempo, foi colocada a prova inúmeras vezes. Alguns estudos têm encontrado resultados que dão suporte a ela (Chave et al. 2006), enquanto outros nem tanto (Yu et al. 1998, McGill 2003, 2006). Considerando a simplicidade de suas pressuposições, a teoria neutra tem se mostrado bastante eficiente ao descrever comunidades naturais (cf. McGill 2003) sem a necessidade de evocar processos estruturadores mais complexos. Contudo, a abordagem dicotômica entre suporte a teoria neutra ou de nicho talvez não seja a mais adequada. Comunidades totalmente neutras provavelmente não existem, enquanto que comunidades estruturadas e comandadas exclusivamente por nicho ou competição são raras (Adler et al. 2006). Assim, a idéia da deriva neutra dever ser vista mais como uma nova maneira de entender a realidade. Ela fornece os elementos básicos a partir dos quais é possível fazer ajustes e incluir outros elementos (Alonso et al. 2006). Assim, se processos neutros e de nicho estiverem atuando simultaneamente em uma mesma comunidade, a questão agora é: qual a contribuição relativa destes processos na estruturação de comunidades naturais (Adler et al. 2006)?

Teoria neutra e a estrutura de comunidades arbóreas

Meu projeto de pesquisa está relacionado ao estudo de diferentes tipos de Florestas Tropicais, o mesmo sistema para o qual Hubbell idealizou sua teoria. Por meio de informações obtidas em parcelas permanentes de 10 ha, seu objetivo geral do estudo é descrever e comparar as propriedades coletivas (estrutura, riqueza, distribuição de abundância das espécies e padrões de distribuição espacial) de comunidades arbóreas em quatro diferentes formações florestais: Cerradão, Floresta Estacional Semidecidual, Floresta Ombrófila Densa e Floresta Alta de Restinga. Como representam florestas situadas em ambientes com diferenças marcantes nas características de solo, precipitação e balanço hídrico, estas quatro áreas representam uma interessante oportunidade na busca de padrões que sejam comuns a comunidades sobre diferentes condições ambientais.

As análises preliminares mostram que além de estarem submetidas a diferentes condições ambientais, essas quatro formações florestais diferem consideravelmente em composição, densidade de indivíduos e riqueza. Por outro lado, os padrões de distribuição diamétrica dos indivíduos e de distribuição da abundância relativa das espécies parecem ser mais semelhantes entre as áreas (Figura 1 e 2), exceto para o Cerradão que tem padrões levemente distintos. Quais são os fatores mais importantes que levam a tais similaridades e diferenças são ainda pouco conhecidos. Mas, uma interpretação mais clássica seria que fatores ambientais (i.e. determinísticos) seriam, pelo menos em uma escala regional, os principais determinantes destes padrões. Ou seja, quanto mais limitante é o ambiente menor é a riqueza e diversidade de espécies.

Como dito acima, atribuir essas diferenças a fatores determinísticos seria o usual. Contudo, percebi durante as leituras das disciplinas a possibilidade de que eventos neutros também estejam atuando na estruturação destas comunidades arbóreas em diferentes escalas (Adler et al. 2006). Dentro desta nova perspectiva introduzida pela Teoria Neutra da Biodiversidade os fatores determinísticos (e.g. número ou área disponível de ambientes propícios ao desenvolvimento vegetal), teriam pouco poder explicativo sobre o número de espécies e diversidade destas comunidades. Ou seja, a diferença na riqueza e diversidade entre as formações seria mais bem explicada por processos relacionados à dispersão, natalidade e mortalidade das espécies para nestas florestas. Por exemplo, a taxa de imigração de espécies no Cerradão e na Restinga seria menor que na Floresta Ombrófila e na floresta Estacional e isso levaria a um menor número de espécies presentes na comunidade local (parcela permanente). Ou talvez, estas comunidades locais não tenham tido tempo suficiente para atingir o equilíbrio, por questões históricas.

Figura 1. Estrutura diamétrica das quatro comunidades arbóreas estudadas. Legenda: EEC= Floresta Estacional; EEA= Cerradão; PEIC= Floresta de Restinga; PECB= Floresta Ombrófila.

Figura 2. Distribuição de abundância relativa das espécies nas quatro comunidades estudadas. Legenda: EEC= Floresta Estacional; EEA= Cerradão; PEIC= Floresta de Restinga; PECB= Floresta Ombrófila.

Neste contexto, o objetivo passa a ser detectar e quantificar a participação relativa de processos neutros e de processos de nicho na estruturação dessas comunidades. Será que a participação deles é a mesma nos diferentes tipos de floresta? Condições ambientais mais limitantes ao desenvolvimento vegetal favoreceriam um tipo de processo em detrimento do outro? Para verificar estas perguntas, o ideal seria construir modelos que pudessem considerar isoladamente e em conjunto a participação de processos neutros e de processos de nicho. Um primeiro modelo, mais simples, consideraria apenas processos aleatórios em sua formulação. Um segundo modelo levaria em consideração os aspectos relacionados à diversidade e disponibilidade de nichos disponíveis. E um terceiro modelo, mais complexo, iria unir processos neutros e de nicho num só modelo. Cada um destes modelos verbais seria então comparado com os dados empíricos de cada uma das formações florestais estudadas. Aquele modelo que se ajustasse melhor aos dados seria aquele que está mais próximo da realidade em cada uma das condições ambientais estudadas. Assim, acredito que a contribuição relativa de cada um destes processos possa ser avaliada. Da mesma forma, poderia ser avaliado se a união dos dois processos num só modelo aumenta seu poder explicativo.

Alguns entraves podem ser previstos ao operacionalizar essa abordagem. Apesar de mais recente, a Teoria Neutra possui princípios que são facilmente modeláveis para realizar simulações de número de espécies e distribuição de abundância das espécies, de modo que já existem programas computacionais específicos para simular deriva neutra de comunidades (Hankin 2007). Para a construção do modelo baseado na teoria do nicho, contudo, a operacionalização de um modelo não é tão simples. Isto porque há vários processos distintos que podem atuar simultaneamente (e.g. processos dependentes de densidade, competição, facilitação, partição de recursos, heterogeneidade ambiental) e reuni-los em um modelo com poucos parâmetros pode ser uma tarefa difícil. Operacionalizar a união dos processos neutros e de nicho num só modelo certamente será ainda mais complexo e pode não fornecer poder explicativo adicional (e.g. Volkov et al. 2005).

Referências

  • Adler, P.B., HilleRisLambers, J. & Levine, J.M. 2007. A niche for neutrality. Ecology Letters 10: 95-104.
  • Alonso, D., Etienne, R. S. & McKane, A.J. 2006. The merits of neutral theory. Trends in Ecology and Evolution 21[8]: 451-457.
  • Bell, G. 2000. The distribution of abundance in neutral communities. American Naturalist 155[5], 606-617.
  • Caswell, H. 1976. Community structure: a neutral model analysis. Ecological Monographs 46: 327-354.
  • Chave, J., Alonso, D., & Etienne, R.S. 2006. Comparing models of species abundance. Nature 441: E1.
  • Connell, JH 1980. Diversity and the coevolution of competitors, or the ghost of competition past. Oikos 35: 131-138.
  • Connell, J.H., Tracey, J.G. & Webb, L.J. 1984. Compensatory recruitment, growth, and mortality as factors maintaining Rain Forest tree diversity. Ecological Monographs 54: 141-164.
  • Grubb, P.J. 1977. Maintenance of species-richness in plant communities – The importance of regeneration niche. Biological Reviews 52: 107-145.
  • Hankin, R.K.S. 2007. Introducing untb, an R package for simulating ecological drift under the unified neutral theory of biodiversity. Journal of Statistical Software 22[12]: 1-15.
  • Hubbell, S.P. 1979. Tree dispersion, abundance, and diversity in a tropical dry forest. Science 203: 1299-1309.
  • Hubbell, S.P. 1997. A unified theory of biogeography and relative species abundance and its application to tropical rain forests and coral reefs. Coral Reefs 16 (Suppl.): S9-S21
  • Hubbell, S.P. 2001. The unified neutral theory of biodiversity and biogeography. Princeton Monographs in Population Biology. Princeton University Press, Princeton.
  • Hutchinson, G.E. 1959. Homage to Santa Rosalia or why are there so many kinds of animals? American Naturalist 93:145-159.
  • Kimura, M. 1968. Evolutionary rate at the molecular level. Nature 217: 624-626.
  • King, J.L. & Jukes, T.H. 1969. Non-Darwinian Evolution. Science 164[3881]: 788 - 798
  • MacArthur, R.H. & Wilson, E.O. 1967. The theory of island biogeography. Princeton University Press, Princeton, New Jersey, USA.
  • McGill, B. J. 2003. A test of the unified neutral theory of biodiversity. Nature 422: 881-885.
  • McGill, B. J., Maurer, B.A. & Weiser, M. D. 2006. Empirical evaluation of neutral theory. Ecology 87[6]: 1411-1423.
  • Thomas, W.R. & Foin, T.C. 1982. Neutral hypotheses and patterns of species diversity: fact or artifact? Paleobiology 8[1]: 45-55.
  • Volkov, I., Banavar, J.R., He, F., Hubbell, S.P. & Maritan, A. 2005. Density dependence explains tree species abundance and diversity in tropical forests. Nature 438: 658-661.
  • Yu, D.W., Terborgh, J.W. & Potts, M.D. 1998. Can high tree species be explained by Hubbell's null model? Ecology Letters 1: 193-199.
Definindo o acaso...

Casual – que depende do acaso; fortuito, acidental, eventual.

Aleatório – (i) Depende de fatores incertos, sujeitos ao acaso; casual, fortuito; (ii) depende de um acontecimento incerto quanto às vantagens ou prejuízos.

Acaso – (i) Conjunto de pequenas causas independentes entre si, que se prendem a leis ignoradas ou mal conhecidas, que determinam um acontecimento qualquer; (ii) o resultado deste conjunto de causas (iii); Acontecimento fortuito, fato imprevisto, casualidade; (iv) destino, fado, sorte, fortuna.

Ao acaso – (i) sem direção, sem rumo, à toa, a esmo; (ii) sem reflexão, impensadamente, inconsideradamente

1)
Neste texto, as palavras ‘casual’, ‘ao acaso’ e ‘aleatório’ serão consideradas como sinônimos, apesar das definições em dicionário de língua portuguesa serem ligeiramente distintas - ver definições abaixo
2)
Busca feita pelo Google Acadêmico em 24 de Setembro de 2009, usando as palavras chave ‘Neutral’, ‘Ecology’ e ‘Hubbell’
ensaios/renato_a._ferreira_de_lima.txt · Última modificação: 2011/07/20 14:40 por 127.0.0.1
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