Natália Fernandes Rossi

Seção 1

O conceito de Nicho foi há adotado na ecologia por Grinnel há mais de oito décadas (Grinell 1924), e desde então tem sido bastante utilizado e discutido (Patten & Auble 1981). Uma busca simples no site Isi Web of Knowlegde com a palavra “niche” obteve 25.369 resultados com esse assunto e 5.076 resultados de artigos que continham essa palavra no título.

A definição do termo nicho, conforme usado por Grinell (1924) se referia ao nicho ecológico ou ambiental como a distribuição geográfica de uma espécie ou população. Antes deste trabalho de Grinell, ele mesmo já havia introduzido a idéia de nicho como uma medida da distribuição geográfica do organismo, mas não havia ainda cunhado o termo nicho propriamente dito (Grinell 1917). Na conceituação de Grinell, nicho era, portanto, um conjunto de propriedades físicas e climáticas do ambiente ocupado que possibilitava a ocorrência de uma espécie, essa definição não levava em consideração a interação com outras espécies (Vandermeer 1972).

Independentemente de Grinell, Elton estava desenvolvendo um conceito de nicho baseado nos hábitos alimentares das espécies, definindo nicho como o lugar de uma espécie ou organismo no ambiente, mas levando em conta também suas relações com alimentos e inimigos (Elton 1927 apud Vandermeer 1972)), portanto, neste conceito nicho era o status da espécie ou sua posição dentro de seu ambiente, incluindo suas relações com os fatores abióticos e bióticos que a cercam. Foi Elton quem primeiro considerou que o nicho real de um organismo pode diferir de seu nicho potencial.

Até três décadas depois, o nicho continuou sendo considerado uma profissão ou a ocupação de um animal no ecossistema (Vandermeer 1972). Foi então que Hutchinson redefiniu nicho como sendo um hipervolume, um “espaço multidimensional” resultante de várias características, tanto físicas quanto biológicas, do ambiente que condicionam a existência de determinada espécie, cada ponto nesse “espaço” corresponderia, portanto, a um estado de uma característica que permite a presença daquela espécie, ou na qual a espécie teria um crescimento positivo, sendo este hipervolume chamado por Hutchinson (1957) de nicho fundamental. Hutchinson cunhou a diferença entre nicho fundamental ou potencial, e nicho realizado ou efetivo, uma diferença essencial para o conceito mais reconhecido de nicho, o Hutchinsoniano. Enquanto nicho fundamental é basicamente um conjunto de várias características do habitat que permitem a presença do organismo, o nicho realizado considera além das características físicas do ambiente, a presença de outras espécies e suas interações para a possibilidade de ocorrência de determinado organismo. Dessa forma, nicho realizado ou efetivo é parte menor do que o nicho fundamental, é o “espaço” onde o organismo de fato se encontra.

Dentro da Teoria do nicho, outros conceitos surgiram, alguns especialmente marcantes para a ecologia. O conceito de sobreposição de nicho foi talvez o mais discutido (Coldwell & Futuyma 1971, Carvalho et al. 2005). A sobreposição de nicho entre duas espécies já havia sido considerada por Grinell, e ressaltada por Hutchinson. Hutchinson sugeriu que talvez duas espécies de nicho idêntico não pudessem habitar o mesmo local, e expõe que “duas espécies simpátricas de um mesmo gênero ou subfamília sempre terão diferenças ecológicas” (Hutchinson 1957). Essa colocação é bastante intuitiva, entretanto, o fato citado por Hutchinson não prova que duas espécies de mesmo nicho não podem coexistir, visto que, mesmo dentro de uma população, se fossemos capazes de medir com exatidão, nenhum organismo teria nicho idêntico ao de outro (Fig.1), e talvez, dois indivíduos de espécies diferentes possam ter nicho mais similar em determinada época do ano, ou época de vida, do que dois organismos da mesma espécie, se medir os fatores do nicho em épocas sazonais distintas ou em jovens e adultos. MacArthur sugeriu que o tempo de atividade, o período de atividade, a época reprodutiva; os hábitos alimentares, o local de alimentação, a forma de forrageio e a preferência alimentar; além da localização do ninho poderiam ser fatores importantes para a sobreposição de nicho entre cinco espécies de aves (MacArthur 1958).

É importante ressaltar, como o próprio Hutchinson colocou em seu artigo (1957), que o nicho multidimensional é uma medida estática, feita em um momento do tempo, e que jamais seremos capazes de quantificar todos os fatores que interferem na possibilidade de ocorrência de um organismo, ou seja, não teremos jamais completo acesso ao nicho fundamental de um organismo ou espécie. Portanto, apesar de poder nos fornecer uma idéia bastante interessante das relações entre os organismos e o meio, nossa visão do nicho de determinado organismo jamais será de sua dimensão exata e, principalmente, jamais poderemos acessar o nicho de todas as espécies de uma comunidade, o que conseqüentemente nos leva a saber menos do nicho efetivo das que está sendo analisada.

Além disso, o nicho efetivo de uma espécie não é sempre igual em qualquer ambiente ou ocasião, um exemplo é a ampliação da amplitude do nicho para algumas espécies em ilhas, onde são capazes de manter populações com densidades maiores (ex.: MacArthur et al. 1972), talvez por haver menos predação, mais recursos disponíveis, menos competição ou ainda por serem as ilhas ambientes geralmente mais estáveis (MacArthur et al. 1972), entretanto, trabalhos recentes demonstram que algumas espécies insulares não se comportam dessa maneira (Blondel 2008).

Vale ressaltar também que fatores antrópicos, como a fragmentação do habitat, a alteração de características do habitat, a regeneração das matas, podem afetar enormemente o nicho realizado das espécies. Como esses fatores ambientais não existiam desde os primórdios daquela espécie, indago se a espécie está mudando seu nicho fundamental ou ampliando seu nicho efetivo em direção ao fundamental? Talvez seja o nicho afetivo se ampliando em direção ao nicho fundamental, visto que em geral, nossas medidas ecológicas para uma espécie não são capazes de medir seu nicho fundamental, mas podemos visualizá-lo melhor quando adicionamos um distúrbio no ambiente, seja diminuindo a competição (Coldwell & Futuyma 1971) ou alterando as características do habitat.

Assim sendo, é importante notar que a definição de nicho não deveria ser encarada como uma entidade estática, medido num momento do tempo, em um único hábitat. Não podemos esquecer que o nicho de uma espécie pode ser fortemente alterado de um ambiente para outro, em diferentes épocas da vida, em diferentes épocas do ano, e ainda, em resposta a diferentes distúrbios ambientais, sendo eles antropogêncios ou não. O que julgamos ser o nicho de uma espécie deveria ser sempre considerado uma proposta de nicho, visto que ele é certamente dinâmico e não somos capazes de prever a resposta das espécies a determinadas alterações no habitat.

Seção 2

Em meu projeto de mestrado realizado no Departamento de Zoologia, um guia de identificação para pequenos mamíferos não voadores do Planalto Atlântico de São Paulo, irei descrever não somente caracteres morfológicos, como também realizarei uma síntese sobre o conhecimento da distribuição geográfica, caracterização do uso de habitats, história natural e caracterização dos hábitos, e discussão dos status das espécies, visto que, as características ecológicas, seus requerimentos e preferências, são essenciais para a compreensão de onde podemos encontrá-las com maior probabilidade. Dentre essas características, irei considerar também o status de conservação das espécies, procurando responder se elas são afetadas pela fragmentação da floresta e/ou afetadas pela alteração local do habitat.

Apesar do meu projeto não ter sido desenhado para responder questões de nicho, a caracterização dos hábitos, do habitat e a descrição da história natural, nada mais são do que a própria descrição simplificada do nicho ecológico de cada espécie, visto expressar os requisitos ambientais tanto físicos quanto bióticos necessários para a sobrevivência de determinada espécie.

Além disso, muitos trabalhos demonstram que alguns ambientes têm capacidade de abrigar maior riqueza do que outros, devido ao maior número de nichos disponíveis, ou ao fato de os nichos serem menores e mais estáveis (Klopfer & MacArthur 1960). Em um trabalho bastante recente e elegante com plantas, Levine e HilleRisLambers (2009) demonstram que a diferença de nicho tem um papel crítico na manutenção da diversidade. A região para a qual meu projeto é desenvolvido abriga a maior riqueza de espécies de pequenos mamíferos da Mata Atlântica. Essa região é também bastante ameaçada por se localizar bastante próxima da maior cidade do país e sofrer forte desmatamento e fragmentação há mais de um século, e segundo o próprio Hutchinson (Hutchinson 1957), o aumento dos distúrbios de habitat é um campo fértil de pesquisa para o nicho ecológico.

Existem trabalhos que indicam que espécies generalistas, ou com nichos mais amplos devem ser mais tolerantes a mudanças climáticas, por exemplo, do que espécies com um nicho mais restrito, talvez isso se repita também para a vulnerabilidade aos distúrbios de causa antrópica. Com o objetivo de mostrar a transformação na paisagem induzida pelo ser humano e as respostas ecológicas e evolutivas das populações à heterogeneidade e fragmentação do habitat para aves em uma ilha no Mediterrâneo, Blondel (2008) encontrou que, de fato, modificações induzidas por humanos na paisagem modificaram os padrões do uso de habitat pelas aves.

Carvalho e colaboradores (2005) encontraram uma modificação na dieta e no uso dos estratos da floresta em Caluromys philander em Poço das Antas, uma espécie de pequeno mamífero também inserida no meu projeto, sendo que em fragmentos pequenos a espécie consumia mais artrópodes e usava mais o solo e o sub-bosque, enquanto a literatura considera sua dieta como frugívora-onívora e sua preferência pelo dossel, inclusive para a mesma região em áreas de floresta contínua. Os autores consideram que a mudança pode refletir uma habilidade em mudar a dieta, e isso pode ser bastante importante para a sobrevivência em fragmentos menores, onde frutos normalmente são um recurso mais raro e o dossel é normalmente mais baixo e aberto (Carvalho et al. 2005). Outra espécie de pequeno mamífero que usa preferencialmente o dossel em áreas contínuas (Vieira & Monteiro-Filho 2003), foi capturada em fragmentos florestais em proporção semelhante no dossel e sub-bosque (Barros 2006).

Certamente outras espécies também devem ter seu nicho ampliado, adaptando-se a novas características do habitat de acordo com novidades impostas pelos humanos. Um exemplo de mudança de nicho efetivo por distúrbios antrópicos é o fato de em arredores do Parque Nacional do Iguaçu, o gado ser a maior fonte de biomassa consumida por onças pintadas. Antes da presença humana a preferência alimentar da onça era grandes e médios mamíferos silvestres, mas como a caça destes levou a uma diminuição neste recurso, as onças passaram a explorar as criações de gado (Azevedo 2008).

Ao descrever o uso do microhabitat de pequenos roedores, se eu utilizasse como referência somente um trabalho de época seca, poderia concluir que galhadas pequenas e a umidade da serrapilheira são os fatores mais importantes de sua distribuição, mas se eu levasse em conta somente a época úmida, encontraria uma distribuição mais associada à disponibilidade de artrópodes (Naxara et al. 2009).

Tendo em vista que assim como o próprio conceito de nicho e a própria ciência são dinâmicos, o nicho das espécies também o é. E ao pensar nessas mudanças de nicho ao longo da vida do organismo e sua resposta a diferentes distúrbios, me fez compreender a importância de descrever o uso de habitats, a história natural e a caracterização dos hábitos das espécies levando em consideração essa dinamicidade e variação.

Bibliografia

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Blondel, J. 2008. On humans and wildlife in Mediterranean islands. Journal of Biogeography, 35, pp. 509-518.

Carvalho, F.M.V.; Fernandez, F.A.S. & Nessimian, J.L. 2005. Food habitats of sympatric opossums coexisting in small Atlantic Forest fragments in Brazil. Mammalian Biology, 70 (6), pp. 366-375.

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