Redes Ecológicas aplicadas à biologia da conservação

Marília Palumbo Gaiarsa

A conservação da biodiversidade tem recebido cada vez mais atenção nos dias de hoje à medida que tomamos ciência da crise ambiental que enfrentamos (Rozzi et al, 2001; Purvis et al. 2000). Uma das ferramentas empregadas pela biologia da conservação para prevenção de extinções de espécies é a avaliação da vulnerabilidade a extinção. As espécies enfrentam diferentes riscos de extinção, decorrentes de diversos atributos de suas histórias de vida (Primack et al., 2001), além da influência de fatores extrínsecos, como a destruição dos habitats. No ritmo atual de perda de espécies e de destruição dos habitats, nos deparamos cada vez mais com a “agonia da escolha” (Vane-Wright et al 1991), quanto ao estabelecimento de áreas e espécies prioritárias para a conservação. Entretanto, a maior parte dos estudos realizados até o momento considera as espécies per se em detrimento de seu papel no funcionamento dos ecossistemas (McCann 2007; Jordàn et al. 2007).

O estudo das redes ecológicas nos fornecer um contexto teórico que permite avaliar as conseqüências das perturbações no nível da comunidade e dos ecossistemas (Bascompte 2009). A abordagem de redes em ecologia enfatiza a interação entre as espécies (Bascompte 2009), na qual cada espécie é representada por um nó, e a ligação entre dois nós simboliza a interação entre duas espécies diferentes. Dessa forma, é possível estudar a interdependência global entre as espécies.

Os estudos com redes ecológicas são recentes, sendo que grande parte foi realizada na última década tratando majoritariamente de mutualismos entre plantas e seus polinizadores e/ou frugívoros (e.g. Bascompte et al. 2003; Memmott et al. 2004; Bascompte & Jordano 2007; Olesen et al. 2007; Rezende et al. 2007; Bastolla et al. 2009). Os principais padrões emergentes de redes mutualísticas são a heterogeneidade, o aninhamento e a modularidade.

A heterogeneidade é caracterizada pela presença de espécies que apresentam maior número de ligações do que seria esperado ao acaso (Bascompte 2009), de modo que a rede é organizada ao redor dessas espécies altamente conectadas (Solé & Montoya 2001). O aninhamento diz respeito à forma como ocorrem as interações entre as espécies, consistindo em um padrão de interação no qual especialistas interagem com conjuntos de espécies com as quais os generalistas interagem. Assim, espécies com poucas interações (especialistas) estão conectadas a espécies com muitas interações (generalistas) de outro conjunto (Bascompte et al. 2003). Já a modularidade é um padrão menos estudado e consiste em subgrupos de espécies (módulos) que são pouco conectados entre si, mas que internamente possuem espécies fortemente conectadas (Olesen et al. 2007). A ligação entre os diferentes módulos é feita por espécies denominadas “espécie-chave”.

Todos os padrões descritos encontrados em redes ecológicas mutualísticas têm importantes implicações para a conservação. Primeiramente, a identificação de espécies-chave demonstra que a conseqüência da perda de uma espécie depende fortemente do papel ecológico por esta desempenhado. Além disso, a extinção dessas espécies pode provocar a fragmentação da rede em módulos isolados (Olesen et al. 2007), tendo um efeito negativo na interação entre as espécies remanescentes. No entanto, existem indícios de que os efeitos de perturbações se propagam mais lentamente em redes modulares do que em redes não modulares (Olesen et al. 2007). Este padrão é interessante do ponto de vista de manejo, pois haveria mais tempo para intervir e diminuir, ou exterminar, a perturbação.

Outra característica das redes de mutualismo, decorrente do aninhamento, é a especialização assimétrica, que pode ser entendida de duas maneiras: em termos de número de ligações (a espécie A interage apenas com a espécie B, que por sua vez interage com muitas outras) ou em termos de intensidade da interação (se A é fortemente dependente de B, B tende a ser menos dependente de A). Dessa forma, as redes mutualísticas não são organizadas aleatoriamente e nem por grupos isolados de espécies (especialistas interagindo apenas com especialistas); pelo contrário, são organizadas ao redor de espécies generalistas (Bascompte 2009). Este padrão torna a rede coesa e pode conferir uma maior robustez à perda de espécies, já que podem existir rotas alternativas para o sistema responder às perturbações (Bascompte et al. 2003). Além disso, a persistência de espécies raras é facilitada, já que a maioria interage com espécies generalistas, que têm menor probabilidade de extinção. Adicionalmente, a estrutura aninhada das teias mutualísticas tende a maximizar o número de espécies coexistentes, diminuindo a competição e aumentando a biodiversidade (Bastolla et al. 2009). Dessa forma, é interessante que estratégias de manejo e de conservação procurem maneiras de manter o padrão de aninhamento das redes, já que este propicia uma maior riqueza.

Outros tipos de trabalhos com redes ecológicas que encontraram padrões interessantes foram realizados com redes tróficas (e.g. Camacho et al. 2002; Williams et al. 2002; Dunne et al. 2002; Bascompte et al. 2005; Jordán et al. 2007). Novamente, foram encontrados padrões relacionando características estruturais das redes à susceptibilidade à perturbações (Bascompte et al. 2005). Por exemplo, parece que quanto maior o número de interações fortes entre pares de espécies existente dentro de uma rede, maior sua propensão à perturbações (Bascompte et al. 2005). Além disso, a robustez da rede trófica (em termos de resistência à perturbações) pode ser fortemente dependente da presença de predadores de topo (Bascompte et al. 2005); já o efeito que a presença de onívoros tem sobre as redes ainda não é claro, podendo estabilizá-las (Montoya & Solé 2002), desestabilizá-las (Camacho et al. 2002), ou ainda, não ter nenhuma efeito (Dunne et al. 2002).

Williams e colaboradores (2002) realizaram um estudo com redes alimentares e concluíram que 80% e 97% das espécies estão a dois ou três nós de distância, respectivamente. Esse grande número de caminhos curtos sugere que perturbações poderiam se espalhar rapidamente por toda a rede (Montoya et al. 2006; Bascompte et al. 2005). Assim, as espécies dentro dos ecossistemas parecem ser mais conectadas do que se pensava, e portanto, a extinção de espécies nativas e/ou chegada de invasoras tem o potencial de afetar um grande número de espécies (Williams et al. 2002).

Cada vez que uma espécie é extinta, sua história evolutiva se perde para sempre. Uma forma de mensurar a biodiversidade utiliza a história evolutiva, e pode ser expressa em comprimento total dos ramos de uma filogenia (Purvis et al. 2000). A perda de história evolutiva associada a qualquer nível de extinção dependerá da taxa de especiação do clado em questão e do padrão de extinção de suas espécies (Heard & Mooers 2000). Considerando que o padrão atual de extinção de espécies não é ao acaso (Purvis et al. 2000), ou seja, algumas espécies são mais propensas à extinção do que outras, é importante que entendamos tais padrões para a criação de estratégias de conservação mais eficientes. Espécies próximas filogeneticamente desempenham papéis similares nas redes ecológicas, e estão susceptíveis a uma maior frequência de co-extinções. Conseqüentemente ocorre maior perda da história evolutiva do que o esperado, caso a extinção fosse ao acaso (Rezende et al. 2007). Assim, eventos de co-extinções dentro de redes podem exibir um sinal filogenético, aumentando ainda mais a perda de diversidade taxonômica.

A resposta da rede à extinção de espécies parece ser dependente da quantidade de interações da espécie em questão. Quando a remoção de espécies é realizada ao acaso, a rede permanece robusta, com pouca fragmentação e poucas extinções secundárias (Dunne et al. 2002; Solé & Montoya 2001; Montoya et al 2006). No entanto, quando as espécies mais conectadas são sucessivamente removidas das redes, são formados vários “subcompartimentos” menores e menos conectados (Dunne et al. 2002; Solé & Montoya 2001; Montoya et al 2006). Talvez isso possa ser explicado pelo fato de espécies mais conectadas serem mais abundantes, e por isso, terem menor probabilidade de extinção (Montoya et al. 2006).

Assim, embora as redes ecológicas pareçam robustas em relação à extinção aleatória de espécies (Dunne et al. 2002), podem ser extremamente frágeis frente a ataques direcionados a, por exemplo, espécies mais conectadas (Solé & Montoya 2001; Williams et al 2002). Alguns estudos sugerem que os ecossistemas são pouco ou nada compartimentalizados (Pimm & Lawton 1980), i.e., muito conectados, e que o efeito da perda de uma espécie poderia se propagar por diversos ecossistemas (Camacho et al. 2002). Nesse sentido, é importante identificar e proteger espécies super conectadas, já que estas aparentemente mantêm a estabilidade dos ecossistemas (Solé & Montoya 2001).

Em resumo, grande parte das redes ecológicas são como “mundos pequenos” devido à existência de caminhos muito curtos entre as diferentes espécies (Dunne et al. 2002). Não está claro se esta característica torna as redes robustas (ao permitir que sejam criados caminhos alternativos para o sistema responder às perturbações; Bascompte et al. 2003) ou as torna vulneráveis (os efeitos das perturbações podem ser rapidamente distribuídos por toda a rede; Montoya et al. 2006; Bascompte et al. 2005). Portanto, entender de que forma perturbações podem alterar a estrutura e o funcionamento das redes ecológicas é indispensável para a criação de estratégias de manejo adequadas.

Estudos futuros de redes ecológicas poderiam investigar como processos ecológicos e evolutivos se combinam na organização das comunidades, e buscar entender de que forma a arquitetura das redes ecológicas influencia na persistência da biodiversidade (Bascompte & Jordano 2007). Esse conhecimento é essencial para que possamos entender como as espécies interagem entre si, direta e indiretamente, e quais são os mecanismos que permitem sua persistência (Montoya et al. 2006), além de como as diferentes redes respondem à níveis de perturbações variados (Olesen et al. 2007). Sem entender como as redes são organizadas, não poderemos avaliar sua robustez e resiliência frente à extinção e invasão de espécies (Bascompte 2009). A identificação de tais características auxiliará na priorização de esforços de conservação (McCann 2007) e na elucidação da natureza do processo de extinção.

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