O papel do nicho em estudos de ecologia comparativa

Segundo o dicionário Aurélio de língua portuguesa, “nicho” significa cavidade em parede para colocar imagem. Outros significados, oriundos de diversas áreas, atribuídos a esta palavra podem ser: um local, status ou atividade que uma pessoa/objeto melhor se encaixa. Em ecologia, “nicho” é um conceito básico que permeia por toda a área (Pianka, 2000). Por isso, aqui este termo será tratado como “nicho ecológico” e serão abordadas as principais idéias envolvidas nesta expressão, bem como, a sua aplicação em estudos de ecologia comparativa.

Em um trabalho publicado em 1917, Joseph Grinnell analisando a distribuição da ave “Califórnia Thrasher”, concluiu que vários fatores tanto ambientais (e.g. temperatura, estrutura física do meio), ecológicos e comportamentais (e.g. dieta; defesa contra predadores), quanto aspectos relacionados à morfologia da espécie, limitam a sua distribuição. Grinnell é considerado o fundador do conceito de nicho, e a partir deste e de outros trabalhos, definiu nicho basicamente como: o local que uma dada espécie ocupa na natureza, determinado pelos seus requisitos abióticos (e.g. fatores climáticos), preferências alimentares, características do microhabitat, e especializações quanto ao uso do ambiente ao longo do tempo (e.g. diurna/noturna, sazonalidade) (Pianka, 2000; Chase e Leibold, 2003; Polechová e Storch, in press).

Entretanto, foi George Hutchinson em 1957 quem formalizou e expôs uma das abordagens mais influentes do conceito de nicho. Segundo a visão Hutchinsoniana, as variáveis ambientais podem ser definidas como dimensões do ambiente. Cada espécie só tolera parte de cada dimensão (e.g. o lagarto Moloch horridus está associado a solos que tenham textura arenosa; Pianka e Pianka,1970). Se existirem “n” dimensões no ambiente, o nicho pode ser descrito em um espaço n-dimensional (e.g. o lagarto Moloch horridus está associado a solos que tenham textura arenosa, se alimentam estritamente de formigas e utilizam arbustos espinhosos como meio de fuga; Pianka e Pianka, 1970). Neste caso, o nicho está sendo descrito ao longo do gradiente de três variáveis (microhabitat, dieta e fuga de predadores), em um espaço tridimensional. Hutchinson definiu então o nicho de um organismo, como um hipervolume n-dimensional, o qual delimita a “faixa” completa de condições sob as quais um organismo pode se reproduzir com sucesso (Futuyma, 1992; Rickfles e Miller, 1999; Slobodkin e Slack, 1999; Pianka, 2000). Posteriormente, Hutchinson denominou nicho fundamental como um conjunto de todas as condições favoráveis sob as quais um organismo vive e se reproduz na ausência de outras espécies, e conseqüentemente, na ausência de possíveis competidores e predadores. Por isso, tem-se que o nicho fundamental é um conceito abstrato. Já o nicho realizado seria um subconjunto do nicho fundamental, onde a espécie persistiria em condições mais restritas devido às interações com outras espécies que, ou utilizam recursos similares e/ou são predadores em potencial (Pianka, 2000; Chase e Leibold, 2003).

Definido o nicho de uma espécie, surgiram então outros conceitos relacionados: a amplitude do nicho (extensão da variedade de recursos utilizados), sobreposição de nicho (duas ou mais espécies compartilham o mesmo nicho ou parte dele), complementaridade de nicho (quando duas ou mais espécies são muito similares na utilização de um recurso e para coexistir elas diferem na utilização de outro), dentre outros. Adicionalmente, à medida que os ecólogos começaram a adotar uma perspectiva evolutiva em seus estudos, novas extensões para o conceito de nicho e suas aplicações surgiram.

Análises comparativas têm sido amplamente utilizadas nos últimos 20 anos. Este tipo de abordagem consiste em comparar dois ou mais caracteres entre espécies ou um caráter e uma variável ambiental, testando possíveis relações causais entre os dois parâmetros, levando em conta aspectos filogenéticos das espécies estudadas. Estes estudos permitem também, utilizando filogenias disponíveis para as linhagens de interesse, reconstruir os fenótipos dos supostos ancestrais e traçar a possível história de tais fenótipos ao longo da história evolutiva de um grupo de organismos (Harvey e Pagel, 1991; Desdevises et al., 2003).

Este tipo de análise tem sido integrado a estudos de ecomorfologia. Estes se baseiam na suposição de que a morfologia reflete as características ecológicas de um organismo (Klingenberg e Ekau, 1996; Harmon et al., 2005). Desta forma, analisando os vários aspectos ecológicos (e.g. microhabitat, dieta, atividade) em um grupo de espécies aparentadas (e.g. uma tribo de serpentes), pode-se dizer que se está analisando a história evolutiva das diversas dimensões do nicho das espécies. A partir deste pensamento, várias hipóteses relacionando o conceito de “amplitude do nicho” com aspectos morfológicos surgiram e começaram a ser testadas com base em um cenário evolutivo. Por exemplo, Costa et al., 2008, utilizando um método comparativo e estudando aspectos evolutivos em várias espécies de lagartos, testaram a hipótese de que espécies com maior tamanho corporal possuem maior distribuição geográfica, e assim, uma maior amplitude do nicho em relação a dieta. No caso deste trabalho, os autores encontraram uma relação negativa entre estes parâmetros invocando explicações alternativas ao que até então havia sido proposto na literatura. Este tipo de hipótese e outras similares poderiam ser claramente testadas em outros trabalhos de ecomorfologia, levando os autores a considerarem os vários aspectos do conceito de nicho em suas análises e conclusões. Em Martins et al. (2001) foi reconstruída a história evolutiva para dieta em serpentes do gênero Bothrops, utilizando generalista e especialista como categorias. Notou-se que espécies especialistas apareceram pelo menos cinco vezes durante a evolução do grupo, sendo a grande maioria das espécies generalistas. Os autores poderiam então, ter testado se tais espécies generalistas (maior amplitude do nicho da dieta em relação às especialistas) possuiriam maior tamanho corporal e maior distribuição geográfica, e a partir disso inferir hipóteses para explicar o estreitamento nesta dimensão do nicho nas espécies especialistas.

Os caráteres das espécies sejam eles morfológicos, fisiológicos ou comportamentais, são obviamente vinculados ao nicho e geralmente susceptíveis aos processos de evolução. Conseqüentemente, a modelagem das características do nicho pode ser vista como um fenômeno evolutivo (Knouft et al., 2006). Recentemente, novos métodos forneceram ferramentas para estudar a evolução do nicho em ecologia comparativa (ver Knouft et al., 2006). Trabalhos iniciais utilizando este tipo de aproximação constataram que a conservação do nicho (e.g. quanto mais próximas filogeneticamente as espécies mais similares são seus nichos) é o padrão esperado durante a diversificação das espécies (Harvey e Pagel, 1991; Webb et al., 2002; Losos, 2008b). Além disso, outros trabalhos passaram a discutir o conceito de “inércia filogenética” ou “sinal filogenético” em contraposição ao conceito de “conservadorismo de nicho filogenético”. Os primeiros indicam a presença de uma relação entre o grau de parentesco entre espécies e similaridade fenotípica. Já o segundo consiste que duas espécies com alto grau de parentesco são mais ecologicamente similares do que seriam baseando-se apenas em suas relações filogenéticas (Desdevises et al., 2003; Wiens, 2004; Losos, 2008a; Losos, 2008b). A documentação da presença do conservadorismo de nicho filogenético durante a diversificação de um grupo de espécies requer a demonstração de que a similaridade fenotípica de espécies próximas filogeneticamente seja significativamente maior do que aquela esperada com base apenas no seu grau de parentesco (Losos, 2008a). A constatação do conservadorismo do nicho em espécies leva a discussão de que talvez exista uma pressão que esteja impedindo que estas espécies se diferenciem quanto ao aspecto do nicho estudado.

De fato, esta é uma discussão recente na literatura. Muitos trabalhos que abordam a evolução de aspectos da ecologia em grupos de espécies utilizando métodos comparativos, não têm feito a distinção entre estes dois conceitos (e.g. Martins et al., 2001; Pizzatto et al., 2007). No entanto, a inclusão de análises de conservadorismo do nicho nestes trabalhos seria extremamente relevante em tentar entender vários fenômenos, como por exemplo, os processos de especiação que poderiam ter ocorrido e os padrões biogeográficos de um clado.

À medida que hipóteses filogenéticas foram se tornando disponíveis para vários grupos de organismos, o estudo da ecologia das comunidades pôde ser realizado à luz do conhecimento das relações evolutivas das espécies coexistentes (Webb et al., 2002). Cadle e Greene (1993) e Losos (1994) chamam atenção para a importância de levar em conta a história evolutiva dos clados que compõe uma determinada comunidade. O conceito de nicho e outros relacionados puderam ser mais aprofundadamente trabalhados através destas novas abordagens: Losos et al (2003) estudou uma comunidade de lagartos tropicais e levando em conta as relações de parentesco entre as espécies pode avaliar a importância do conservadorismo do nicho versus a divergência do nicho em determinar a estrutura desta comunidade. A convergência entre espécies em aspectos do nicho também influenciou diversos trabalhos que abordam as relações filogenéticas em comunidades. Tais trabalhos tentam propor explicações para a ocorrência de tais convergências e suas implicações na estruturação de diferentes ou de uma mesma comunidade (e.g. Melville et al., 2006; França et al., 2008).

Falar da evolução de aspectos ecológicos e morfológicos de um grupo de espécies, sejam elas pertencentes a um mesmo clado ou a uma mesma comunidade, é falar também sobre evolução do nicho. Com isso, trabalhos em ecologia comparativa devem sempre abordar os diversos conceitos originados a partir do conceito de nicho. Da mesma forma, ecólogos ao analisar a distribuição das espécies, o uso de recursos, interações etc., não podem deixar de levar em conta os fatores históricos que estão por trás dos padrões contemporâneos observados.

Referências

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