A teoria neutra de biodiversidade e a dinâmica de populações

1)

Camila dos Santos de Barros

Os processos que governam a geração e manutenção da diversidade biológica são complexos e variados. A enorme quantidade de detalhes que seriam necessários para descrever a complexidade real pode ser imensurável e de difícil análise. Como conseqüência é necessário encontrar alguma maneira de sumarizar essa complexidade para facilitar nosso entendimento da diversidade global (Maurer & McGill 2004). Vários trabalhos têm tentado desenvolver um modelo simples que descreva os padrões de biodiversidade encontrados. Até o começo 2001, a idéia mais influente era a da teoria dos nichos, onde2) as espécies deferiram3) em seus nichos e por isso coexistiam (Hutchinson 1957, Chesson 2000). Mas em 2001, Hubbell (2001), baseado nos fundamentos da teoria de biogeografia de ilhas (MacArthur & Wilson 1967) e nos conceitos estabelecidos sobre abundância relativa das espécies (Preston 1980), desenvolveu um modelo neutro que descreve como os processos de especiação poderiam resultar em um padrão de riqueza de espécies através da deriva ecológica, a teoria neutra da biodiversidade (TNB).

A grande inovação desta teoria se deve ao fato dela diretamente contestar o paradigma do nicho ao propor que similaridades entre as espécies, e não diferenças, explicariam a alta diversidade de muitas comunidades naturais. Hubbell argumenta que seria possível integrar as teorias de Preston e de MacArthur-Wilson partindo de alguns pressupostos básicos: (a) igualdade entre os indivíduos e espécies com respeito à probabilidade per capita de reprodução, mortalidade e especiação, (b) limitação de recursos, o “somatório-zero”, que significa o total de indivíduos por unidade de área é constante, ( c ) deriva ecológica, ou seja, processos estocásticos comandam as variações de abundâncias das espécies sob a restrição da limitação de recursos sob o critério acima (de Marco, 2006). A idéia do modelo é de que a estocasticidade demográfica e a dispersão limitada são mais importantes do que diferenças funcionais para gerar os padrões da comunidade (Hubbell 2005).

Em resumo, a teoria diz que após a morte de um indivíduo, o “lugar vago” deixado por ele poderia ser substituído tanto por outros indivíduos da mesma espécie, quanto por indivíduos de outra espécie, oriunda4) da mesma comunidade ou imigrante da metacomunidade5). A probabilidade de uma dada espécie i da comunidade local ser substituída após sua morte pela espécie j é proporcional à abundância da espécie j dentro da comunidade local ou, em caso de imigração, dentro da metacomunidade. Hubell (2001) ainda reconhece que, em última instância, a origem de novas espécies é a responsável para a manutenção da diversidade na metacomunidade. A especiação se daria por uma mutação pontual, que origina uma nova espécie a partir de mutações genéticas de outras espécies já presentes no pool regional, ou da subdivisão de espécies alopátricas através de vicariância6) (Perry et al 2009). Entretanto, Hubbell (2001) apenas assume que o tempo de especiação é extremamente lento nesses modelos. De fato, a especiação por deriva é uma das principais críticas à TNB.

Contudo, essa teoria teve uma enorme repercussão na comunidade científica (Alonso et al. 2006). Em uma revisão sobre o trabalho de Hubbell (2001), Casemiro e Pardial (2008) encontraram até junho de 2008 um total de 1128 citações deste trabalho, o que não deixa dúvidas sobre sua importância, ainda mais comparando com o artigo de Hucthinson sobre o nicho multidimensional, publicado em 1959 (42 anos antes), por exemplo, foi citado 1.293 vezes (Casemiro e Pardial 2008). Por sua inovação esta teoria tem sido considerada uma das mais importantes contribuições para a ecologia e biogeografia do último século. A TNB tem como vantagem a simplicidade, toda a teoria é baseada em apenas três parâmetros: θ, o número fundamental da biodiversidade, que determina o número e a abundância relativa das espécies no conjunto regional de espécies; J, o tamanho da comunidade; e m, a probabilidade de um indivíduo morto ser substituído por um imigrante do conjunto de espécies.

No entanto, a simplificação tem um custo relacionado. Embora a simplificação seja um procedimento de modelagem que reduz a complexidade do modelo e o torna mais fácil de lidar, alguns trabalhos têm mostrado, por exemplo, que a falta de uma base demográfica explícita na TNB pode esconder importantes mecanismos e pode levar a conclusões incompletas (Maurer & McGill 2004, Allouche e Kadmon 2009). A teoria ignora os princípios básicos da dinâmica de populações (e.g.: nascimento, mortalidade e imigração7) ), estando todos os parâmetros demográficos resumidos em um único parâmetro m. Como resultado, alguns trabalhos questionam se as predições da teoria estão explicitamente conectadas aos processos reais que determinam o número de espécies em uma comunidade (Allouche e Kadmon 2009). Uma limitação também relacionada é o tamanho da comunidade J, que é dado como um parâmetro livre ao invés de ser derivado dos processos demográficos que determinam a abundância das espécies na comunidade (Allouche e Kadmon 2009). Mudanças no número de espécies nas comunidades podem resultar apenas de mudanças nas populações através de alterações na quantidade de indivíduos devido a nascimentos, mortes ou migração8).

Um exemplo9) é o recente modelo desenvolvido por Allouche e Kadmon (2009). O modelo considera parâmetros demográficos e, segundo os autores, pode ser considerado uma extensão do modelo de Hubbel. Nesse modelo os autores relaxam os pressupostos de tamanho constante da comunidade e “somatório-zero”10), enquanto mantêm os conceitos de neutralidade, estocasticidade, dispersão limitada e competição por espaço 11). Os autores ainda destacam outra visão obtida a partir da formulação com base demográfica deste modelo: a relação entre diversidade de espécies e reprodução. Essa relação seria crucial para a compreensão dos padrões empíricos da diversidade porque muitos fatores ecológicos influenciam a diversidade através de seus efeitos nas taxas de reprodução das espécies que compõem a comunidade. Ao contrário, a TNB prediz que o aumento da reprodução deve diminuir a diversidade porque qualquer aumento na reprodução local diminui as chances de que um indivíduo morto seja substituído por um imigrante do conjunto regional de espécies. Segundo os autores, o modelo deles unifica essas previsões contraditórias ao mostrar que ambos os efeitos são possíveis, mas seu balanço depende do tamanho da comunidade.

Ainda assim, dos trabalhos publicados que visam testar a validade da TNB, 18 refutaram e 35 corroboraram a TNB (Casemiro e Pardial 2008). No entanto, apesar da maior quantidade de trabalhos corroborando o modelo, a quantidade total de trabalhos que objetivaram testá-lo ainda é pequena (Cassemiro e Pardial 2008, de Marco 2006) e acredito diante da abrangência do modelo mais estudos sejam necessários para determinar a validade de suas simplificações, especialmente nessa questão de demografia.

Porém, antes das discussões sobre a importância da demografia na determinação dos padrões de diversidade, cabe perguntar o que já sabemos sobre os padrões demográficos. Apesar da dinâmica de populações ser um tópico que vem sendo estudo há muitos anos, apenas recente12) a modelagem tem sido aplicada nesses estudos13). Antes da aplicação da modelagem os estudos eram basicamente descritivos e por isso acredito que a demografia é um campo onde ainda há muito a ser explorado14) (Willians et al 2002). O tamanho de uma população é dado diretamente pelo balanço do número de nascimentos, mortes e migrações, mas esses parâmetros podem ter uma influência maior ou menor no tamanho da população em resposta a uma série de fatores indiretos que os influenciam15) (Krebs 2002). Nesse ponto é onde se concentra o atual cerne das pesquisas demográficas: qual a importância desses fatores em determinado ambiente e conseqüentemente qual parâmetro demográfico irá ter maior influência no tamanho das populações e por fim na persistência das mesmas na comunidade (Oli & Dobson 2003).

Teorias baseadas no nicho predizem que a composição das espécies reflete respostas adaptativas destas espécies e assim depende das condições ambientais. Por outro lado, teorias neutras predizem que a similaridade na composição das espécies depende dos efeitos da dispersão limitada e assim diminui à medida que aumenta a distância entre duas comunidades (Drakou et al 2009). Meu projeto de doutorado procura investigar a dinâmica populacional de pequenos mamíferos e os efeitos da disponibilidade de recursos em uma paisagem contínua no Planalto Atlântico Paulista. Os dados são coletados em três grades 16) diferentes e uma análise prévia mostrou que as comunidades podem ser consideradas independentes17). A diferença na diversidade das três grades 18) me faz pensar sobre o mecanismo que determina esse padrão, mas este estudo foi desenhado para demografia e por isso me faltariam dados para discutir padrões de diversidade. Por outro lado, esse projeto está diretamente interessado no entendimento dos efeitos indiretos nos padrões populacionais, descrevendo a dinâmica populacional de diferentes espécies de pequenos mamíferos e investigando a influência da variação de fatores abióticos (pluviosidade e temperatura) e de fatores bióticos (disponibilidade de recursos alimentares) na determinação da dinâmica populacional. Adicionalmente, também será analisado o padrão de reprodução dos pequenos mamíferos também verificando a influência da disponibilidade de recursos alimentares no padrão reprodutivo das espécies, tudo através da modelagem19). Ao verificar a relação do tamanho populacional com variáveis ambientais (mais relacionada com a teoria de nicho) e taxas de migração (mais relacionada com teoria neutra), poderei identificar quais desses fatores são mais importantes para a determinação da dinâmica populacional e de dessa forma, embora o projeto não tenha sido desenhado para investigar as teorias de diversidade, ao aumentar os conhecimentos sobre demografia nesse estudo empírico, esse projeto poderá contribuir para fundamentar as discussões sobre os efeitos da das simplificações da TNB são realmente obstáculos para sua aplicação prática.

Referências

Allouche O & Kadmon R. 2009. Demographic analysis of Hubbell’s neutral theory of biodiversity. Journal of Theoretical Biology 258: 274–280.

Alonso D, Etienne RS & McKane AJ. 2006. The merits of neutral theory. Trends in Ecology and Evolution 21: 451-457.

Cassemiro FAS & Padial AA. 2008. Teoria neutra da biodiversidade e biogeografia: aspectos teóricos, impactos na literatura e perspectivas. Oecologia Brasiliense 12: 706-719.

Chesson, P. 2000. Mechanisms of maintenance of species diversity. Annual Review of Ecology, Evolution, and Systematics 31, 343–366.

de Marco P. 2006. Um longo caminho até uma teoria unificada para a ecologia. Oecologia Brasiliense 10: 120-126

Drakou EG, Bobori DC, Kallimanis AS, Mazaris AD, Sgardelis SP & Pantis JD. 2009. Freshwater fish community structured more by dispersal limitation than by environmental heterogeneity. Ecology of Freshwater Fish 18: 369–379.

Hubbell SP. 2001. The unified neutral theory of biodiversity and biogeography. Princeton University Press, New Jersey. 396p.

Hubbell SP. 2005. Neutral theory in community ecology and the hypothesis of functional equivalence. Functional Ecology 19: 166–172

Hutchinson GE. 1957. Population studies – animal ecology and demography – concluding remarks. Cold Spring Harbor Symposia on Quantitative Biology 22: 415-427.

Krebs CJ. 2002. Beyond population regulation and limitation. Wildlife Research 29:1-10.

Macarthur RH & Wilson EO. 1967. The Theory of Island Biogeography. Princeton University Press, Princeton.

Maurer BA & McGill BJ. 2004. Neutral and non-neutral macroecology. Basic and Applied Ecology 5: 413—422

Oli MK & Dobson FS. 2003 The relative importance of life-history variables to population growth rate in mammals: Cole’s prediction revisited. American Naturalist 161:422–440.

Perry GLW, Enright NJ, Miller BP, Lamont BB & Etienne RS. 2009. Dispersal, edaphic fidelity and speciation in species-rich Western Australian shrublands: evaluating a neutral model of biodiversity. Oikos 118: 1349-1362.

Preston FW. 1980. Noncanonical distributions of commonness and rarity. Ecology 61:88-97.

Williams BK, Nichols JD, Conroy, MJ. 2002. Analysis and management of animal populations: modeling, estimation, and decision making. Academic Press. London.

Arquivo do Ensaio

1)
Apreciação Geral: Uma crítica dos componentes demográficos da TNB é uma contribuição original e muito relevante. O ensaio foi bem sucedido em demonstrar como um tema da disciplina pode contribuir para a sua pesquisa. A parte de revisão teórica da TNB está bem articulada, mas tem várias afirmações sem a devida fundamentação. Quero dizer com isto que muitas afirmativas não estão acompanhadas de um suporte empírico ou lógico. A parte de aplicação à sua pesquisa é um bom começo, e espero que você prossiga e amadureça estas idéias. Isto passa por reconhecer que qualquer diferença em parâmetros demográficos das espécies já viola a premissa de neutralidade, especialmente se uma correlação com o ambiente que tenha potencial valor adaptativo for reconhecida.
2)
use “onde” apenas como preposição de lugar
3)
diferem?
4)
oriundos
5)
metacomunidade não foi definida
6)
especiação alopátrica ocorre por vicariância, mas vicariância não divide espécies (alopátricas ou não) e após a especiação elas podem ou não continuar alopátricas
7)
estes 3 elementos estão presentes na TNB: indivíduos nascem, morrem e há migrantes da metacomunidade. A questão é se sua definição na Teoria é adequada
8)
não compreendi este último argumento
9)
de que?
10)
não seria a mesma coisa? Qual a diferença entre tamanho constante da comunidade e somatória zero?
11)
qual o papel destes conceitos neste modelo?
12)
recentemente?
13)
não concordo. A logística já é um modelo demográfico, e tem mais de um século de existência. A tradição da ecologia de populações sempre foi a de construir modelos matemáticos.
14)
creio que vc está falando de um tipo específico de modelos, pois em termos gerais eles sempre foram usados em demografia, para fins não só descritivos, mas tradicionalmente preditivos
15)
que fatores seriam estes?
16)
jargão
17)
em termos de troca de indivíduos nuam escala temporal pequena, presumo
18)
qual a magnitude desta diferença?
19)
que tipo de modelagem?
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