A sobrepesca e o colapso de populações marinhas

Seção 1

A sociedade humana influencia fortemente processos biogeoquímicos, hidrológicos e ecológicos, desde escalas locais a escalas globais. Freqüentemente enfrentamos ambientes mais variáveis com maior incerteza sobre como os ecossistemas responderão ao inevitável aumento nos níveis de utilização humana e parece que desafiamos a capacidade de estados desejáveis do ecossistema em lidar com perturbações (STEFFEN et al, 2004 appud FOLKE et al, 2004). Um estado desejável de um ecossistema é retrato da combinação da função, estrutura, identidade e feedbacks que o ambiente apresenta, e pode com isso, gerar serviços ecológicos de interesse para sustentabilidade do planeta de maneira habitável.

Mas como avaliar o quanto a humanidade é capaz de usufruir de tais serviços sem que provoque uma mudança para um estado menos desejável? Segundo WALKER et al (2004) podemos avaliar a resiliencia de um ecossistema para isso, ou seja, a capacidade de um sistema absorver um distúrbio e se reorganizar quando sofre uma alteração, mantendo essencialmente, a mesma função, estrutura, identidade e feedbacks.

Quatro aspectos da resiliencia são destacados por WALKER et al (2004), tais como: o máximo que um sistema pode ser mudando antes de perder sua habilidade de recuperação (a largura da bacia de atração); a facilidade ou dificuldade em se mudar um sistema (a topologia da bacia); a trajetória atual do sistema e o quão perto o estado atual do sistema se encontra do seu limite; e o fato de que a resiliencia de um sistema numa escala de foco em particular dependerá da influencia dos estados e dinâmicas de escalas acima e abaixo dele.

A noção de velocidade de retorno de um sistema ao seu estado equilíbrio após uma perturbação (PIMM, 1991) leva ao que tem sido denominado “resiliencia de engenharia” (HOLLING, 1996) e, apesar de relacionada a um aspecto de “resiliencia ecológica” não pode ser considerada como a medida da resiliencia. A velocidade de retorno não indicará as chances de um sistema falhar na manutenção de funções essenciais, pela possibilidade de existência de estados múltiplos (appud WALKER et al, 2004).

O “espaço de estado” de um sistema é definido pelas variáveis que constituem este sistema em todas as suas possíveis combinações de existência e o estado de um sistema é sempre definido pelos atuais valores destas variáveis. Uma “bacia de atração” é a região no espaço de estado no qual o sistema tende a se manter. Para sistemas que tendem a um equilíbrio, o estado de equilíbrio é definido como um “atrator”, e a bacia de atração reúne todas as condições iniciais que tenderão a este estado de equilíbrio. Podem ocorrer mudanças no número de bacias de atração, mudanças nas posições dos limites entre as latitudes, ou mudanças nas profundidades das bacias (WALKER et al, 2004).

Ou seja, um estudo sobre a resiliencia de um sistema irá modelar o espaço de estado de um sistema e quais as chances do sistema se manter ou retornar à mesma bacia de atração na qual se encontrava antes das possíveis perturbações que ele possa vir a sofrer.

Seção 2

A pesquisa que realizo atualmente tem origem no trabalho voluntário que venho desenvolvendo durante os últimos cinco anos em uma ONG que monitora a atividade de pesca artesanal no litoral do estado de São Paulo. O grupo de pesquisa que compõe a ONG tem como objetivo específico acompanhar os eventos de captura acidental de pequenos cetáceos em redes de pesca artesanal, que ocorrem no Estado. Os projetos realizados pela equipe, assim como minha pesquisa, são direcionados principalmente a uma espécie, a toninha (Pontoporia blainvillei), que é atualmente classificada como ameaçada de extinção, tanto pela lista de espécies ameaçadas do IBAMA, como pela “Red List” da IUCN (2009). A espécie é endêmica na América do Sul, ocorrendo da Argentina ao Estado do Espírito Santo, e estudos indicam que sua principal ameaça é a pesca acidental, que vem reduzindo drasticamente suas populações ao longo de toda distribuição. As taxas de by-catch estimadas excedem a taxa potencial de crescimento da população, levando SECCHI (1999) a afirmar que os constantes e insustentáveis níveis de captura acidental que vem sendo observados estão conduzindo as populações de P. blainvillei ao colapso. O objetivo geral de todos os projetos desenvolvidos pela equipe é gerar informação que possa contribuir para o manejo e conservação da espécie e seu ambiente.

Sendo assim, meu trabalho de mestrado é parte de um projeto de pesquisa maior que busca estudar a rede de interações da qual a toninha faz parte. Por se tratar de uma espécie de comportamento bastante discreto a observação in situ de seus hábitos é bastante dificultada e o estudo de suas relações tróficas é feito a partir da análise de conteúdos estomacais. A proposta de trabalho para o meu mestrado é analisar o conteúdo estomacal de cerca de 70 indivíduos da espécie, distribuídos entre machos e fêmeas, juvenis e adultos do litoral norte, centro e sul do Estado de São Paulo. Os animais utilizados para isto foram recuperados das redes de pesca e fornecidos à nossa equipe por pescadores colaboradores da ONG, durante cerca de 10 anos. O by-catch ocorre porque estes animais utilizam um sistema de sonar para sua movimentação no ambiente, chamado de ecolocalização. Este sistema sensorial não é capaz de detectar as redes de pesca que ficam colocadas na água durante períodos de 12-48h, então muitas espécies de pequenos cetáceos se emalham e morrem afogados. Estes animais não possuem interesse comercial, muito pelo contrário, muitas vezes causam prejuízo aos pescadores por danificar seus artefatos de pesca ao se emalhar.

Minha proposta inclui análise de preferência alimentar e seletividade de presas, utilizando dados do Instituto de Pesca para obtenção da disponibilidade de presas no ambiente; comparação dos hábitos alimentares entre as três regiões do litoral paulista (norte, centro e sul), entre machos e fêmeas e entre juvenis e adultos. Isto com o objetivo de compreender quais as presas utilizadas pela espécie nesta região.

Desde o início do curso eu havia pensado que meu ensaio trataria sobre predação, por acreditar que este seria o assunto mais diretamente relacionado ao meu trabalho, já que estudo uma espécie que é predadora de topo de cadeia. Porém, no decorrer da disciplina meu interesse foi maior pelo estudo de redes tróficas e estabilidade ou resiliência de sistemas. Pensando não diretamente no meu projeto particular, mas no meu trabalho dentro do projeto de preservação da espécie. Para a preservação da espécie não basta somente conseguirmos apenas que a captura acidental seja diminuída ou encerrada, mas é preciso entender o funcionamento da rede trófica em que ela está inserida e qual o caminho que este sistema ao qual ela pertence está tomando.

O artigo discutido na última aula da disciplina (PERSSON et AL, 2007) foi bastante interessante por mostrar que o sistema, a lagoa em questão, vinha sofrendo uma perturbação crônica (a pesca), apesar de não sinalizar o caminho que estava tomando, parecendo que a população de peixe estava se sustentando. Essa situação de perturbação contínua é igual a que observamos no ambiente marinho para muitas espécies de cetáceos (com a pesca acidental ou intencional) e outras de interesse comercial. PERSSON et al (2007) observaram que após um determinado impacto na população, mesmo com a remoção da perturbação, o sistema não foi capaz de retornar ao seu estado original. Será que algo parecido não pode estar para acontecer com as toninhas? Atualmente os dados que se tem sobre a atividade pesqueira e captura acidental são bastante fragmentados e contêm algumas incertezas, já que não há fiscalização eficiente e os estudos feitos por pesquisadores têm que contar bastante com a disposição em colaborar por parte dos pescadores. Estes fatores aliados à sobrepesca descontrolada têm levado a atual crise de muitas pescarias e ao colapso de várias populações de predadores de topo do ecossistema marinho.

Um ponto fundamental a ser levado em conta é o fato de que no trabalho de PERSSON et al (2007), todo o mecanismo de funcionamento do sistema era conhecido, as relações tróficas envolvendo o predador estavam claras e podiam ser acompanhadas. Mas para o litoral paulista isto está longe de ser uma realidade. Estes mecanismos envolvem todas as formas de alimentação que podem variar de acordo com o desenvolvimento ontogenético, sazonalidade, sexo e estado reprodutivo.

Esta situação mostra o caso de um sistema que pode estar próximo do limite de uma bacia de atração desejável e caminhando para uma bacia bastante indesejável, com o possível colapso de grande parte da atividade pesqueira. O objetivo deve ser prevenir que o sistema mude para um estado alternativo, ou bacia de atração de menor interesse pelos serviços ecológicos prestados e do qual talvez seja muito difícil ou impossível de se recuperar.

O estudo de conteúdos estomacais é de importância fundamental para se começar a conhecer quais as relações tróficas nas quais a espécie está envolvida, porém ele retrata somente os eventos de alimentação recente. Mas as relações tróficas podem variar por diversos fatores, ao longo do desenvolvimento ontogenético de cada espécie ou por variações do próprio ambiente.

Por outro lado, conhecendo as presas utilizadas pela espécie, estudos de hábitos alimentares utilizando os isótopos de carbono e nitrogênio podem ser realizados. Estas análises são capazes de identificar todo o histórico alimentar ao longo do crescimento do indivíduo, mudanças de hábitos por razões sazonais ou por eventos reprodutivos, indicar a partição de nicho com outras espécies, a localização dos eventos de alimentação (região de mar aberto ou costeiro, bentônica ou pelágica) e demonstrar a qualidade deste ambiente (ocorrência de biomagnificação de contaminantes nos tecidos do animal). Estes estudos de variação da dieta ao longo do tempo, já realizados para algumas espécies, têm permitido correlacionar esta variabilidade com mudanças na abundância de suas populações e identificar perturbações na dinâmica trófica de ecossistemas. Outro fator interessante desta técnica de estudo é que ela documenta os nutrientes assimilados e não simplesmente as presas ingeridas. Quando a técnica é utilizada com dentes de animais depositados em museus, ela permite a descrição do histórico da dieta da espécie.

Estudos como os citados acima são úteis para a conservação das espécies por avaliar como elas enfrentam as mudanças do ecossistema em função das populações de presas e disponibilidade de hábitat. Importante ter em mente que as populações podem flutuar e ao invés de buscarmos enxergar os estados de equilíbrio podemos tentar entender quais são as condições para persistência da população ou espécie.

Impactos causados por atividades humanas podem fazer os ecossistemas mais vulneráveis a mudanças que previamente poderiam se absorvidas. Como uma conseqüência, ecossistemas podem repentinamente mudar de um estado desejado a um menos desejado quanto a sua capacidade de gerar serviços ecológicos (FOLKE et al, 2004). Em vista disto é importante conhecer todo o funcionamento da rede trófica pra poder realizar um manejo eficiente de qualquer espécie. Não adianta somente controlar a pesca da espécie que se encontra ameaçada de extinção, mas é preciso manter todas aquelas que podem influenciar sua sobrevivência e manutenção no ecossistema de maneira sustentável.

Até então via meu trabalho muito mais como descritivo de hábitos alimentares, com uma interpretação ecológica bastante superficial. Porém, considerando o contexto no qual ele se insere e abordagem apresentada neste ensaio, o trabalho ganha grande importância por ser a base inicial para o estudo da rede trófica em estudo.

Referências

FOLKE, C., CARPENTER, S., WALKER,B., SCHEFFER, M., ELMQVIST, T., GUNDERSON,L., HOLLING, C.S. 2004. Regime shifts, resilience and biodiversity in ecosystem management. Annu. Rev. Ecol. Evol. Syst. 35: 557-581.

HOLLING, C. S. 1996. Engineering resilience versus ecological resilience. In P. C. Schulze, editor. Engineering within ecological constraints. National Academy Press, Washington, D.C., USA.

PERSSON, L., AMUNDSEN, P., ROOS, A. M. De, KLEMETSEN, A., KNUDSEN, R., PRIMICERIO, R. 2007. Culling prey promotes predator recovery – alternative states in a whole-lake experiment. Science. 316: 1743-1746.

PIMM, S.L. 1991. The balance of nature? University of Chicago Press, Chicago, Illinois, USA.

SECCHI, E. R. 1999. Taxa de crescimento potencial intrínseco de um estoque de franciscanas, Pontoporia blainvillei (Gervais e D’Orbigny, 1846) (Cetacea, Pontoporiidae) sob o impacto da pesca costeira de emalhe. Tese de mestrado, Universidade do Rio Grande, Brasil.

STEFFEN, W., SANDERSON, A., JÄGER, J., TYSON, P.D., MOORE, B. III et al. 2004. Global change and the earth system: a planet under pressure. Heilderberg: springer-verlag. 333p.

WALKER, B., HOLLING, C.S., CARPENTER, S.R., KINZIG, A. 2004. Resilience, adaptability and transformability in social-ecological systems. Ecology and society. 9(2):5.

Lista Nacional das Espécies da Fauna Brasileira Ameaçadas de Extinção do IBAMA: http://www.mma.gov.br/port/sbf/fauna/index.cfm

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