Essa é uma revisão anterior do documento!


Ensaios 2020

A complementaridade de nicho como um promotor de serviços ecossistêmicos

Artur Lupinetti Cunha

Nicho ecológico é um conceito bem estruturado dentro da área da Biologia, apesar de encontrarmos diferentes perspectivas sobre o mesmo de acordo com a referência utilizada (Ferraro, 2017) - o que não se é de espantar, dada a extensa contribuição de diversos autores na definição deste conceito. O nicho de uma espécie é definido pelo conjunto de características ambientais exigidas ou toleradas por um organismo, assim como pelas interações de tal organismo com os demais (Townsend et al. 2010). Todavia, sendo “nicho” um conceito essencial para o desenvolvimento da área da ecologia, este passou por diversas redefinições ao longo da história. O primeiro a introduzir o termo na ecologia foi Grinnell (1917), que define o nicho como o conjunto de necessidades de uma espécie, dadas pelas condições ambientais nas quais o organismo se localiza. Foi seguido por Elton (1927), cuja definição passa a focar no papel funcional de uma espécie na cadeia alimentar, ou seja, sua relação com os demais organismos. O que acabou com esta dualidade entre a definição ser voltada a relações com o meio abiótico ou biótico foi Hutchinson (1957) que considera o nicho um “hipervolume n-dimensional” onde uma espécie é capaz de manter uma população viável, sendo que cada dimensão deste espaço representaria um fator ambiental agindo sobre a espécie, seja este biótico ou abiótico. Além disso, Hutchinson também diferencia o “nicho fundamental” do “nicho realizado”: o primeiro são as condições na quais um organismo mantém uma população viável na ausência de interações interespecíficas e o segundo na presença destas interações, com foco na competição. Os próximos pesquisadores a reformularem o conceito, a fim de contornar o fato deste ser fortemente dependente da competição interespecífica, foram MacArthur (1967), através da descrição da fina partilha de nicho, mostrando a possibilidade de coexistência de espécies bem similares, e Leibold e Chase (2003), que consideraram não apenas as necessidades que um organismo requer do ambiente, mas também como os organismos moldam o ambiente, flexibilizando o nicho para que este incluísse outras interações como predação e facilitação, nas quais o resultado não é deletério para ambos os participantes.

O conceito de nicho foi base para o desenvolvimento de diversas teorias ecológicas, sendo um dos principais fundamentos e direcionador dos avanços da ecologia de comunidades por muito tempo (Roughgarden, 2009). Por permear entre diversos níveis organizacionais, abrangendo tanto a compreensão das características e exigências de uma espécie quanto ao meio abiótico (nível de população), quanto como as interações entre espécies modelam o nicho realizado e o ambiente (nível de comunidade), a teoria do nicho também possui um papel integrador na ecologia. As diferenças de nicho são uma das principais explicações para a composição das comunidades e para a diversidade biológica existente, tendo em vista que espécies com necessidades diferentes não excluir-se-iam competitivamente e assim coexistiriam no mesmo local (Gause, 1934). Neste sentido, dada certa diferença na habilidade competitiva entre espécies, resultando em espécies que possuem maior fitness do que outras, mecanismos equalizadores iriam no sentido de permitir a coexistência: espécies mais comuns - melhores competidoras - teriam um efeito negativo maior sobre si mesmas do que sobre as demais espécies, justamente por indivíduos da mesma espécie ocuparem o mesmo nicho (Levine & HilleRisLambers, 2009).

Ainda se tratando da diversidade, a hipótese da complementaridade baseia-se nas diferenças entre as espécies, ou seja, diferenças de nicho, para explicar o porquê de ambientes mais diversos serem mais produtivos: tendo que as espécies diferem quanto aos recursos utilizados e quanto a forma com que os utilizam, comunidades mais diversas aproveitam de forma mais eficiente os recursos disponíveis no meio (Cardinale et al. 2006; Tilman et al. 2001). Isto não é válido apenas para a produtividade primária, mas também para diversas outras funções ecossistêmicas: processos ecológicos que controlam os fluxos de energia, nutrientes e matéria orgânica (Cardinale et al. 2012). Exemplos desta relação de aumento da oferta destas funções em ambientes mais biodiversos são a regulação do fluxo de matéria em corpos hídricos (Cardinale et al. 2002), maiores estoques de nitrogênio (Cardinale et al. 2011) e maior resiliência a espécies invasoras (Downing et al. 2012).

Ao contrário da relação entre biodiversidade e funções ecossistêmicas, a relação entre a diversidade de uma comunidade e a provisão de serviços ecossistêmicos (bens e serviços que os ecossistemas provém aos seres humanos) não é tão clara. Geralmente, um serviço ecossistêmico é composto por diversas funções ecossistêmicas interagindo entre si e, considerando que a relação entre o aumento da diversidade de espécies e o da função ecossistêmica não é sempre positiva, não fica intuitivo descobrir o efeito “final” da biodiversidade sobre os serviços ecossistêmicos (Cardinale et al. 2012). Todavia, isto não torna menos importante o entendimento desta relação: compreender o conceito de nicho e, mais especificamente, de como as diferenças de nicho permitem a coexistência de espécies de diferentes grupos funcionais que participam de diferentes modos e intensidades na geração dos serviços ecossistêmicos, é um passo essencial tendo em vista que o conhecimento dos parâmetros que modelam a provisão e o fluxo dos serviços ecossistêmicos são importantes para o planejamento e implementação de soluções baseadas na natureza (Vieira et al. 2018). Além disso, no atual cenário em que espécies são extintas em taxas alarmantes, é necessário compreender que as espécies são diferentes entre si tanto em suas necessidades quanto na forma com que moldam o ambiente e, portanto, o desaparecimento de cada uma pode causar um impacto de magnitudes desconhecidas na provisão de serviços ecossistêmicos (Cardinale et al. 2012).

Um exemplo de como alterações na diversidade não possuem um efeito previsível na provisão de serviços ecossistêmicos é o caso do controle de pragas agrícolas, onde não apenas a riqueza, mas também a composição e as interações entre os organismos nas comunidades podem afetar a direção do efeito: ao mesmo tempo em que uma maior diversidade pode significar um aumento no número de predadores das pragas, também pode representar uma presa alternativa ou um potencial predador para o predador da praga (Harrison et al. 2014). Por outro lado, diversas evidências surgiram nas últimas décadas indicando uma relação positiva entre a biodiversidade e alguns serviços ecossistêmicos, como no caso da estabilidade da atividade pesqueira, na qual é reportado o efeito portfólio, teoria que diz que o aumento da diversidade e a presença de certa redundância funcional entre organismos torna o ambiente mais resiliente à extinção de uma espécies ou variações anuais nas populações, mantendo a produção pesqueira constante (Balvanera et al. 2014); quanto ao sequestro de carbono, Poorter e colaboradores (2015) encontraram que o aumento da diversidade de espécies vegetais aumenta o sequestro de carbono em escalas espaciais menores, onde a presença de uma espécie a mais pode representar uma diferença de nicho e, segundo a teoria da complementaridade, propiciar melhor aproveitamento de recursos (no caso, o gás carbônico). Efeitos positivos da diversidade também surgiram em experimentos sobre o controle de nutrientes no solo, a produção de madeira e apreciação da paisagem (Cardinale et al. 2012, Harrison et al. 2014).

Mas como dito anteriormente, nem sempre o aumento da diversidade representa um aumento na provisão de serviços ecossistêmicos. A situação mais comum em que isto acontece é a introdução de espécies exóticas ou invasoras, quando o aumento da riqueza causa um desequilíbrio nas interações da comunidade, através da vantagem de espécies invasoras na competição por recursos em relação às espécies nativas, devido à ausência de predadores em potencial (Hermoso et al. 2011). Existem ainda alguns casos em que a relação entre a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos não é clara, como a regulação da temperatura e de poluentes atmosféricos. Através do conceito de nicho e de complementaridade, uma hipótese que surge é que em locais com maior biodiversidade vegetal pode-se haver uma maior diversidade de traços funcionais e uma maior estratificação vegetal. Esta maior quantidade de biomassa por unidade de área contribuiria de forma mais significante à redução da temperatura local através da evapotranspiração, mitigando o efeito da ilhas de calor (Lehmann et al. 2014; Vieira et al. 2018), e forneceria uma maior área de contato para realizar a “filtração” do ar, apesar de mais pesquisas serem necessárias nestes tópicos. Além disso, estudos mostraram que o efeito de resfriamento da vegetação varia de acordo com a estrutura da mesma: enquanto espécies arbóreas possuem uma área de efeito maior, gramíneas contribuem mais para o resfriamento da temperatura à noite, mostrando que a complementaridade poderia aprimorar a provisão deste serviço (Jim et al. 2012).

Em suma, estudos realizados até o momento corroboram que a biodiversidade pode potencializar a provisão de determinados serviços ecossistêmicos. Neste contexto, a compreensão do conceito de nicho, mais especificamente do fenômeno da complementaridade gerado pela diferença de nicho, auxiliria no planejamento e aprimoramento de estratégias para a implementação de soluções baseadas na natureza, através do reconhecimento da diferença entre as espécies e de como diferentes interações podem modelar a oferta de serviços ecossistêmicos.

Bibliografia

Balvanera, P. et al. (2014). Linking Biodiversity and Ecosystem Services: Current Uncertainties and the Necessary Next Steps. BioScience, 64(1): 49–57.

Cardinale, B. J., Palmer, M. A., Collins, S. L. (2002). Species diversity enhances ecosystem functioning through interspecific facilitation. Nature, 415: 426-429.

Cardinale, B. J. et al. (2006). Effects of biodiversity on the functioning of trophic groups and ecosystems. Nature, 443: 989-982.

Cardinale, B. J. (2011). Biodiversity improves water quality through niche partitioning. Nature, 472: 86-89.

Cardinale, B. J. et al. (2012). Biodiversity loss and its impact on humanity. Nature, 486: 59–67

Chase, J. M., Leibold, M. A. (2003). Ecological Niches: Linking Classical and Contemporary Approaches. University of Chicago Press.

Downing, A.S., van Nes, E. H., Mooij, W. M., Scheffer, M. (2012) The Resilience and Resistance of an Ecosystem to a Collapse of Diversity. PLoS ONE 7(9): e46135.

Elton, C. (1927). Animal ecology. London: Sidgwick and Jackson.

Ferraro, J. L. S. (2017). Análise de conteúdo sobre o conceito de nicho ecológico: o que dizem os livros didáticos? Revista de Ensino de Ciência e Matemática, 8(5): 35-50.

Gause, G. F. (1934). The Struggle for Existence. New York. Hafner Pub. Co.

Grinnell, J. (1917). The niche-relationships of the California thrasher. Auk 34:427–433.

Harrison et al. (2014). Linkages between biodiversity attributes and ecosystem services: A systematic review. Ecosystem Services, 9: 191-203.

Hermoso, V., Clavero, M., Blanco-Garrido, F., Prenda, J. (2011). Invasive species and habitat degradation in Iberian streams: an analysis of their role in freshwater fish diversity loss. Ecological Applications - Ecological Society of America. 21(1): 175-188.

Hutchinson, G. E. (1957). Concluding remarks. Cold Spring Harbor Symp. Quant. Biol. 22: 415-27.

Jim, C. Y. (2012). Effect of vegetation biomass structure on thermal performance of tropical green roof. Landscape and Ecological Engineering, 8 (2): 173-187.

Lehmann, I. et al. (2014). Urban vegetation structure types as a methodological approach for identifying ecosystem services - Application to the analysis of micro-climatic effects. Ecological Indicators, 42: 58-72.

Levine, J. M., HilleRisLambers, J. (2009). The importance of niches for the maintenance of species diversity. Nature, 461: 254–257.

MacArthur, R. H. (1958). Population ecology of some warblers of northeastern coniferous forests. Ecology 39: 599-619.

Poorter, L. (2015). Diversity enhances carbon storages in tropical forests. Global Ecology and Biogeography, 24: 1314–1328.

Roughgarden J. (2009). Is there a general theory of community ecology? Biology and Philosophy, 224: 521–529.

Tilman, D. A. et al. (2001). Diversity and Productivity in a Long-Term Grassland Experiment. Science, 294: 843-845.

Townsend, C. R., Begon, M., Harper, J. L. (2010). Fundamentos em Ecologia, 3ª ed., Porto Alegre, Artmed.

Vieira, J. et al. (2018). Green spaces are not all the same for the provision of air purification and climate regulation services: The case of urban parks. Environmental Research, 160: 306-313.

ensaios/2020/start.1610416775.txt.gz · Última modificação: 2021/01/12 01:59 por paulo
CC Attribution-Noncommercial-Share Alike 4.0 International
www.chimeric.de Valid CSS Driven by DokuWiki do yourself a favour and use a real browser - get firefox!! Recent changes RSS feed Valid XHTML 1.0