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Ensaios de 2017

É verdade mesmo que a especiação influencia a montagem de comunidades ecológicas?

Melina de Souza Leite

Se perguntarmos a um estudante de ecologia, ou mesmo a um ecólogo profissional, quais os processos mais importantes na montagem de comunidades, uma multitude de mecanismos e processos viriam à mente rapidamente. Contudo, dificilmente a contingência histórica, incluindo-se a especiação, estariam entre os primeiros a serem mencionados – se é que o seriam. Isso porque o histórico de formação teórica da ecologia de comunidades baseou-se por um longo tempo e muito arraigadamente nos processos de nicho (ou seleção senso Vellend (2010)), como competição e predação, na estruturação de comunidades ecológicas e continuam até hoje sendo ensinado como os pilares da ecologia de comunidades. No meio da década de 80, essa percepção começou a mudar quando já havia uma boa quantidade de estudos empíricos que divergiam dos resultados esperados por dinâmicas locais interativas apenas (Ricklefs, 1987). Um exemplo é a diferença na riqueza de espécies em comunidades sob mesmas condições ambientais porém distantes geograficamente, refutando a hipótese da convergência ecológica na montagem de comunidades (Ricklefs, 1987). A partir daí, muito passou-se a ser atribuído a idiossincrasias dos sistemas de estudos, o que impedia os avanços na formulação de uma teoria geral sobre os principais processos estruturadores de comunidades ecológicas (Roughgarden, 2009). Nesse momento, uma visão pluralista da ecologia (McIntosh, 1987) passou a reconhecer que múltiplos fatores podem atuar para determinar a distribuição e abundância das espécies, sendo então dependentes do contexto dos sistemas de estudo. Essa visão pluralista e contexto-dependente veio a culminar, anos depois, em umas das grandes críticas à ecologia de comunidade e sua comunidade científica, com a afirmação de que “a ecologia de comunidades é uma bagunça” (Lawton, 1999).

Como visto acima, o ponto de virada aconteceu quando Ricklefs (1987) trouxe ao debte ecológico um foco na importância em reconhecer de que comunidades locais são marcadas não só por interações locais, mas também por processos históricos e biogeográficos que ocorrem em escala regional e global. Ou seja, o estudo de padrões geográficos de especiação e extinção provém informações sobre os processos que governam o desenvolvimento das biotas regionais e do pool de espécies, que por sua vez influenciam e são influenciados pelos processos em comunidades locais (Cavender-Bares et al., 2009). Um exemplo clássico é a comparação da riqueza de espécies entre comunidades tropicais e temperadas (Mittelbach et al., 2007). O forte decréscimo na diversidade de espécies dos trópicos aos polos em diversos grupos de organismos tem fascinado ecólogos for séculos (Vellend, 2016). Muitas já foram as hipóteses baseadas em nicho para explicar este padrão (Mittelbach et al., 2007). Porém, algo que há muito tempo ficou submerso foi o papel da história geológica influenciando nas taxas de diversificação de espécies (taxa de especiação menos a taxa de extinção). Os ambientes tropicais são tanto mais antigos quanto maiores em área se comparados às regiões temperadas na história geológica da terra (Mittelbach et al., 2007). A hipótese do tempo-e-área prediz que quanto mais tempo e maior a área, maiores as chances de especiação (Wiens et al., 2010), oque levaria a uma maior taxa de diversificação nos trópicos. Por consequência, as comunidades em ambientes tropicais possuem um maior pool de espécies, que nada mais é do que o número de espécies de uma região que são potencialmente colonizadoras das comunidades locais, e o tamanho do pool influencia fortemente a composição e riqueza das comunidades locais (Karger et al., 2015).

Assim, os ecólogos viram que muito da “bagunça” na ecologia de comunidades podia ser, em partes, explicada pelos processos ocorrendo em escalas mais amplas e influenciando a diversidade e coexistência local (Cavender-Bares et al., 2009). O desenvolvimento dessa temática aproximou a ecologia de comunidades à biogeografia histórica (Wiens and Donoghue, 2004), e culminou com a inclusão da especiação como um processo importantíssimo que traz a história evolutiva “para dentro” das comunidades locais, regionais e global (Vellend, 2010). Neste momento, estou chamando de especiação quaisquer processos históricos e biogeográficos atuando sobre as espécies e comunidades que influenciam na montagem de comunidades locais. Os efeitos da especiação no pool regional de espécies, torna-a importante na dinâmica de comunidades locais (Vellend 2010), sendo, junto com a dispersão, um processo que adiciona espécies à comunidade local.

Umas das teorias que formalizou matematicamente a especiação e a influência de um pool regional de espécies nas comunidades locais foi a Teoria Neutra da Biodiversidade de Hubbell (TNB; Hubbell, 2001). Segundo Hubbell (2006), na TNB existe uma “incorporação explícita das ligações entre os processos ecológicos da montagem de comunidades nas escalas locais e os processos evolutivos e biogeográficos em escala mais ampla, como a especiação e a biogeografia” (Hubbell 2006; tradução livre). Nesta visão, a especiação é um processo que acontece apena no pool regional e que vai adicionando espécies para contrabalancear a perda de espécies por extinção estocástica. As dinâmicas do pool e das comunidades locais na metacomunidade1) são independentes e acopladas apenas por dispersão do pool para a metacomunidade. Essa é uma visão simplificada, já que a especiação ocorre nas comunidades e é também influenciada pelos processos que as estruturam, mas avançou no conhecimento por considerar a dinâmica de formação do próprio pool (Mittelbach and Schemske, 2015). De fato, as interações entre dinâmicas ecológicas locais e propriedades físicas e ecológicas das paisagens contribuem fortemente na moldagem de padrões de diversificação em larga escala (Wiens and Donoghue, 2004). Atualmente, novos modelos de especiação em metacomunidades são capazes de reconhecer e incorporar a interação entre a especiação e a dinâmica de comunidades como uma consequência direta da interdependência de mecanismos em escalas locais e regionais ligados por dispersão (Hubert et al., 2015).

Mesmo que a especiação esteja começado a ser contemplada em modelos matemáticos, como o da TNB, não se encontram facilmente estudos empíricos em comunidades explicitando a especiação em modelos estatísticos (Leibold et al., 2010). Realmente, a maioria dos estudos empíricos de comunidades ecológicas na escala local consideram o pool regional de espécies como “fixo”, não havendo necessidade de se incorporá-lo na explicação dos padrões e dinâmicas locais das comunidades (Vellend, 2016). A própria TNB é frequentemente analisada com métodos estatísticos que ignoram a especiação e apenas levam em conta a limitação à dispersão e a deriva gerando o padrão de decaimento de similaridade com a distância entre comunidades (Diniz-Filho et al., 2012; Tuomisto et al., 2012). Um passo importante dado na direção da incorporação da especiação dentro das análises estatísticas de comunidades empíricas foi o uso das relações filogenéticas 2) entre as espécies da comunidade (e.g. Pillar and Duarte, 2010)) como uma aproximação do papel da história evolutiva das espécies na estrutura das comunidades locais (Webb et al., 2002). Adicionalmente, a abordagem filogenética desafia a ideia clássica de que o pool regional de espécies é estático para a escala de tempo na qual as comunidades são montadas (Cavender-Bares et al., 2009).

A incorporação das relações de ancestralidade entre as espécies para explicar padrões em montagem de comunidades ganhou força a partir dos anos 2000 (Webb et al., 2002), formando uma nova área do conhecimento conhecida como Filogenética de Comunidades (Community Phylogenetics). A filogenética de comunidades procura explorar os fatores ecológicos e evolutivos que subjazem a montagem de comunidades e como as interações entre as espécies influencia os processos evolutivos e ecológicos (Pearse et al., 2014). Existem diferentes abordagem estatísticas nesse campo que incorporam de diferentes formas a história evolutiva das espécies em uma análise entre comunidades, como por exemplo o uso de métricas de diversidade filogenética (Tucker et al., 2017). Há também outras abordagens que fazem uso do padrão filogenético – ou seja, a estrutura da árvore filogenética – da comunidade para inferir a importância de processos de nicho por competição ou por filtro ambiental na montagem de comunidades (Webb et al., 2002), mas que ainda são controversos pois assumem premissas nem sempre adequadas (Godoy et al., 2017). Uma destas premissas é o conservadorismo de nicho que assume que espécie próximas taxonomicamente tendem a compartilhar valores de atributos similares (mais similar do que espécies distantes) (Wiens et al., 2010). O conservadorismo de nicho é um ponto delicado da filogenética de comunidades e já foi contestado em diversos estudos (Cavender-Bares et al., 2009), levando ao ceticismo de que os padrões filogenéticos nem sempre nos dizem sobre os processos subjacentes à estruturação de comunidade (Mayfield and Levine, 2010).

Meu projeto de doutorado se insere justamente nas traduções entre teoria ecológica, com seus processos de montagem de comunidades, e métodos estatísticos, que buscam padrões nos dados empíricos. Como eu pretendo abordar os métodos estatísticos sob a perspectiva da teoria de ecologia de comunidades organizada por Vellend (2010), preciso também estudar como os métodos atuais traduzem (se traduzem) os processos de deriva, seleção, dispersão e especiação, em componentes de estatísticos de modelos aplicados a dados empíricos de comunidades ecológicas. Nesse ponto, o aprofundamento nos estudos das influências dos processos históricos e biogeográficos trouxeram luz a um aspecto do meu projeto de doutorado que permanecia pouco explorado: o processo de especiação e suas formas de estudo via métodos estatísticos. Como a filogenética de comunidades é uma área recente, muitos métodos propostos parecem ainda não dialogar eficientemente com a teoria, tanto por questões metodológicas quanto teóricas. Pearse et al. (2014) argumentam que a próxima fronteira metodológica é o desenvolvimento de modelos estatísticos que incorporem a estrutura filogenética ao arcabouço dos modelos em ecologia de comunidades, sendo o próximo passo a quantificação das contribuições relativas dos processos de montagem de comunidades (Vellend, 2016). De qualquer forma, não se deve mais ignorar a especiação como um processo importante não só nas dinâmicas de comunidades locais, mas também na influência das dinâmicas locais no próprio processo de especiação. Eu acredito que daqui a algum tempo, estudantes e ecólogos já terão incorporado a especiação como uma resposta plausível à pergunta feita no início deste ensaio, demonstrando maior maturidade científica no reconhecimento de que ecologia e evolução são indispensáveis no estudo de comunidades ecológicas.

Referências

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1)
Metacomunidade: um grupo de comunidades locais que estão ligadas por dispersão de múltiplas espécies potencialmente interagindo (Leibold e tal 2004).
2)
Relação filogenética: a relação de ancestralidade entre as espécies. Uma medida de relação filogenética é a distância filogenética, que é a distância filogenética entre pares de espécies na comunidade medida pelas somas dos comprimento de ramo até o ancestral comum (para exemplos ver Tucker et al. (2017).
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